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Festivais

9. Janela (2016) – Elle

É inadmissível que a novo Verhoeven seja lido hoje com a mesma complacência dos filmes de décadas atrás.

Por Juliana Soares Lima | 04.11.2016 (sexta-feira)

Elle, primeiro filme de Paul Verhoeven depois de um hiato de dez anos, aportou no 9o Janela Internacional de Cinema como um novo clássico e com expectativas altíssimas por parte do público. O novo longa do diretor holandês foi exibido segunda-feira (31/10) no cine São Luiz (Recife) logo após a sessão do filme Câmara de Espelhos, de Déa Ferraz, e a dobradinha potencializou debates sobre representatividade feminina e misoginia, temas que surgem inevitavelmente a partir dos dois filmes. Aqui vale uma observação: algo de curioso tem acontecido durante esses dias do festival. Elle é mais um filme dentro da programação do Janela onde observar a recepção do público é um exercício que nos diz tanto quanto debruçar-se sobre o filme em si. Afinal de contas, a reação da plateia do cinema é como um tipo de termômetro que mede o nível de aceitação dos discursos e dos temas abordados em um filme.

Mas, voltemos a Elle. O longa-metragem poderia ser brevemente resumido em uma direção impecável de um absurdo espetáculo de horrores. Desde sua cena inicial, onde ouvimos os gemidos de Michèle (Isabelle Huppert) e vemos apenas a imagem de seu gato contemplando a situação, seguida por um plano do corpo da mulher ao chão rodeado de cacos de vidro oferecido à contemplação do espectador ao som de música clássica. Uma bem-sucedida e irresponsável estetização do estupro. Digo bem-sucedida porque parece ser essa a grande aspiração do diretor, que atende aos desejos dos seus mais apaixonados, fiéis e alienados seguidores: embelezar, através de um domínio respeitável da linguagem do cinema, a forma mais baixa de violência imaginável. A partir de então o filme toma um caminho que só reforça a primeira impressão.

A atmosfera é a de um thriller, e o filme nos familiariza com o trauma infantil da protagonista. Filha de um psicopata, Michèle foi envolvida numa bizarra matança orquestrada pelo seu pai, que virou tema de programas policiais de tevê e alimenta o ódio de desconhecidos por ela desde sua infância. Numa perspectiva freudiana, o trauma infantil envolvendo a figura paterna faz com Michèle estabeleça relações pouco saudáveis de intolerância e incompreensão com todos que a cercam, principalmente seus amantes e seu filho. De uma forma completamente improcedente, o que soa é que a intenção do filme é justificar seu modo irreal de lidar com o estupro como uma penitência da qual ela se enxergasse merecedora, como uma forma de expurgação de seus demônios, vendo em seu violentador o redentor.

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Huppert: “É um conto de fadas macabro”.

A partir daqui deixamos um pouco de lado a obra para retornar ao seu público. O termômetro ao qual eu havia me referido no início do texto oferece um diagnóstico muito pessimista com relação a uma parcela do público de Elle. Um dos argumentos mais recorrentes a favor do filme e do diretor é o de que a obra de Paul Verhoeven, cuja carreira inicia-se nos anos 1960, sempre foi polêmica, transgressora e ambígua. Trata-se de uma justificativa das mais rasas. É inadmissível que a obra do diretor seja lida com a mesma complacência de décadas atrás e que filmes como Elle sejam tratados com tamanha aceitação e passividade em uma sociedade em que cada vez mais a representação da mulher no cinema é problematizada.

Enquanto a própria Isabelle Huppert diz tratar-se de um “conto de fadas sombrio”, que não deve ser admitido como uma representação real do que são as mulheres, Verhoeven resume seu filme como um ato cristão. Segundo ele, Michèle estende a mão ao agressor, amando seu inimigo, “como ensinou Jesus”. De fato, o descolamento entre filme e realidade comentado por Huppert é óbvio, mas a fabulação, o devaneio e o exagero são bem vindos só até o ponto em que não reforçam estereótipos femininos e estimulam a perpetuação da violência contra a mulher. A colocação de Verhoeven sobre o ato cristão do perdão serve apenas para reafirmar a inabilidade masculina em apreender o trauma posterior ao abuso sexual, doloroso e cruel independente do contexto da vítima. Por mais filmes sobre mulheres feito por mulheres.

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