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Clássicos

O Selvagem da Motocicleta (Rumble Fish)

E se os horizontes fossem mais largos?

Por Luiz Joaquim | 01.01.2017 (domingo)

O CinemaEscrito reproduz texto de capa do antigo ‘caderno C’, do Jornal do Commercio, escrito por André Luís Resende em 3 de fevereiro de 1989, uma sexta-feira, em função da chegada do filme no formato home-video (VHS).

Atenção – Spoiler – o texto contém informações sobre o final do filme.

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Jornal do Commercio (Recife, sexta-feira, 3 de fevereiro de 1989)

Caderno C

Rumble fish: reflexões na vã violência

André Luís Resende

Rumble fish começa incomodando a quem olha como contemporâneo. Assistir a filmes preto e branco significa apostar no ato remissivo – uma busca aurática (sic) dos velhos tempos. E os “velhos tempos” estão ligados, enquanto metáfora, a um ideal de felicidade fundada na juventude, na esperança de um futuro elástico.

O imobilista saudoso acha que a história, do ponto de vista da moral, é destruição; mas, se olha para o contínuo do progresso encontrar-se-á um projeto evolutivo. Por isso, ele optar por uma fusão do progresso presente com a moral do passado. Uma fusão idealista que tenta conservar o costume e a tradição; um idealismo que defende o niilismo – o recomeço a partir do nada, outra vez -, o eterno retorno ao começo, à origem do nada, como alternativa política, transcendendo a realidade.

Mais que incômodo, quem o assiste terá de fazer um esforço, além de conviver com o progresso do passado, em ruínas, e polemizar a moral do presente, entrincheirada. É preciso obstruir a fantasia colorida e penetrar num mundo preto e branco, superado pela cinema do entretenimento e da fantaciência, desqualificado pela colorização dos computadores (*) e pelos efeitos especiais; Um mundo que não se aceita mais suportar. Em especial, Rumble fish, onde a ação é não é divertimento, onde quem o assiste fica incomodado pela exigência de contemplar a barbárie no imobilismo da história. Na verdade, o filme acentua as associações imaginéticas (sic) inconscientes, mas coloca a violência nos termos adequados à rotina: não há uma luta de classes, mas um choque para saber quem é mais coercitivo, quem é mais violento, entre subgrupos, gangs de adolescentes.

Tensão de rotina

Por outro lado, o filme representa os olhos do motoqueiro, impossibilitado de penetrar nas cores primárias. Um jovem que não pode cronoterapeuticamente abrir mão da tensão da rotina em busca do colorido saudável e aliviante. Outra vez, o filme transformou-se em produto cinematograficamente antigo, como se tivesse o desejo de mostrar a linearidade dos acontecimentos, as expectativas existencialistas de liberdade.

O subúrbio onde acontece a história do contínuo em fragmentos e o confronto dos subgrupos, dificilmente poderia satisfazer as exigências de aceitação pelo contraste harmonioso das cores ou, menos ainda, pela assepsia das ruas e a frequência habitual dos centros urbanos com pessoas e carros trafegando nas calçadas e ruas, respectivamente, seguindo uma racionalidade, que é condicionamento, para respeitar o caótico. Mas esta caoticidade se apresenta ordenada.

Contudo, o subúrbio de Rusty Jamens (Matt Dillon), e de seu irmão motoqueiro (Mickey Rourke) é um deserto urbano, sujo, envelhecido, descolorizado, em  preto e branco. Na aparência, a história não teve continuidade: o subúrbio representa o progresso do passado, a história passou, registrou marcas e, ela mesma, encarregou-se de deixar ruínas que agora, ainda agora e agora mesmo, servem para abrigar a vida humana; vida humana que está desarmonizada, destruída, passando sem perceber que está retida.

Nestes Cenários em ruínas  – para usar o título do livro de um filósofo brasileiro , Nelson Brissac Peixoto (Brasiliense, 1987), que muito pode ajudar para por Rumble fish  diante da estética do efêmero, encontra-se Rusty James. É um adolescente desesperado, vivendo em constantes desafios e confrontos, no subúrbio violento, onde a sobrevivência e autonomia individual exigem tantas vezes o combate direto com outras pessoas ou grupos, entretidos e orientados pelas subculturas da droga e do culto à violência.

Atordoado, Rusty James vive a fantasia de liderar uma gang de rua – como nos velhos tempos do irmão motoqueiro – violenta, invencível e respeitável. Ao mesmo tempo, sente-se sozinho no mundo, embora divida uma esculhamba casa com pai alcoólotra (interpretado por Dennis Hopper, diretor e ator de Easy rider – Sem destino -, os velhos tempos ideias que fala Rumble fish), os desejos sexuais com a namoradinha classe média (Diane Lane). No mais, diversos e incontáveis encontros com a turma da escola e no bar de Benny (Tom Waits).

O mais violento

Rusty James não se cansa de acalentar: é preciso reviver os dias de confrontos entre as gangs. Estes dias existiram  e a sua história está escrita pelos grafiteiros numa única frase, nos muros que agora são ruínas: the motorcycle boy reigns (O motoqueiro reina). E o motoqueiro é seu irmão mais velho – bem, não assim tão velho -, mas que partiu, pôs o pé na estrada e foi conhecer o mundo, em busca de outros horizontes, mais esperanças do que conseguira construir na rotina violenta do subúrbio.

O motoqueiro retorna ao subúrbio no meio de uma disputa  entre gangs, na qual Rusty James leva a pior e é cortado na barriga. O herói de Rusty James, o mito que reinava no subúrbio, retorna, num ato de violência, acelerando a motocicleta e jogando-a sobre o adversário de Rusty James. A calma e a serenidade silenciosa, cool, do motoqueiro impressiona se associada à violência de como resolveu a disputa. Os velhos tempos pareciam estar de volta e o motoqueiro parecia ressurgir, invocando para si o mito que lhe haviam atribuído: reina porque é imbatível, o mais violento.

Enquanto não se cura do talho, Rusty James observa irrequieto o irmão amado, o seu herói, que ainda não chegou aos vinte e cinco anos e, no entanto, parece bem mais velho experiente. A experiência de vida que parece emanar do irmão Rusty James associa aos velhos tempos das disputas entre gangs. Ele não se pergunta por qual motivo o motoqueiro havia voltado. Confortava-o saber que estava seguro e não mais sozinho no mundo perigoso, seguindo guiado justamente por quem reinava e parecia dar a prova de ter vindo reconquistar o seu espaço.

Mas o motoqueiro não toma qualquer atitude que possa impressionar Rusty James. Fica calado, às vezes lendo um livro, e olha as coisas e os ritmos com brevidade contemplativa – faz assim com as revistas, no jornaleiro: faz assim diante do aquário onde estão as betas (rumble fish – peixes de briga), armados e coloridos, para enfrentar uns aos outros. Enquanto Rusty James inquieta-se, pois espera do irmão que mostre quem manda no lugar, o motoqueiro começa a desenrolar uma hipótese para o motivo para o motivo pela qual as betas se armam e brigam no aquário: talvez porque eles estejam acuados em espaço restrito. É claro que ele faz a associação com o cativeiro sem horizontes ou esperança que é o subúrbio, onde resta ao s grupos brigarem pela disputa de espaço, sem diálogo, armados para tudo possuir, principalmente por desconhecerem outras rotinas, outras formas de vida. Quando o motoqueiro olha para dentro do aquário é o principal momento colorido do filme.

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Uma mensagem

Rusty James ignora a discussão que o motoqueiro se impõe: se os horizontes fossem mais largos, se houvesse mais espaço para todos, quem quereria brigar? Pensa nos peixes, mas olha o vazio agressivo do subúrbio. Muitos desejam segui-lo, mas o motoqueiro apenas ri dessa vontade: não interessa ter seguidores porque são muito ásperos e quase impossíveis os caminhos. Fala abatido, lento, como quem carrega a experiência vivida nas costas. Seria estupidez afirmar que o mito do reinado consistiria na tentativa de promover a paz, a união das gangs jovens, para que elas fizessem de suas necessidades de dominar o espaço com algo divertido, algo que pudesse tornar a vida aceitável. Mas era ridículo afirmar agora que a autopreservação, o uso da violência seria algo divertido. Tratava-se de confirmar se estaria certo: com mais horizontes, com mais espaço para seguir seus caminhos, aqueles que brigam, aqueles que são peixes de briga, aqueles que são peixe fora d’água, continuariam brigando ou constituiriam outros percursos?

Seria difícil provar: o pai é alcoólotra, vivendo de benefícios da previdência; a antiga namorada Cassandra (Diana Scarvid), sufocada e sem muitas expectativas, entrega-se às drogas, uma espécie de refúgio contra a rotina massacrante, como certamente vive a beta, no aquário; o irmão querendo reproduzir a violência da mesma maneira que ele uma vez havia reproduzido mas que agora não queria mais fazê-lo; e o policial, que vai pôr fim na sua vida e impedir-lhe que de saber se os peixes brigam ou não quando tem mais espaço, representando a violência constante, vinda do Estado.

Rusty James não compreende os atos do motoqueiro, mas desconfia que estes atos trazem uma mensagem: não é possível viver sozinho, desafiando a todos, mas talvez seja possível viver com mais espaço, ter mais esperança, olhar de frente para um horizonte distante e entender que há muito caminho pela frente. Quando o motoqueiro rouba o aquário da loja de animais, está incontrolavelmente perturbado, querendo uma resposta até mesmo para os motivos que o levaram de volta ao subúrbio, mas sobretudo uma resposta para a vida violenta que parecia viver e que, segundo o policial, é inerente a ele.

Quem descobre que os betas não brigam no rio é Rusty James. O motoqueiro está morto. Zelando pela propriedade privada, o policial atira no motoqueiro. Agora é Rusty James quem pega a motocicleta e vai partir atrás de horizontes mais amplos. Sem dúvida, ele percebe que voltar à violência do subúrbio foi quem mato o motoqueiro. E o filme encerra-se com Rusty James contemplando o horizonte na beira de uma praia. Talvez agora pudesse entender algo mais sobre violência.

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Rumble fish está disponível em diversas locadoras de vídeo da cidade.

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(*) nota do editor do CinemaEscrito: O autor André Luís Resende enfatiza a “…colorização dos computadores…” por conta de, em meados dos anos 1980, a moda de então era relançar clássicos P&B digitalmente colorizados. Como aconteceu com Metropolis (1927), de Fritz Lang, que também ganhou, naquela década, trilha sonora da banda britânica Queen.

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na foto do jornal, Mickey Rourke aparece em imagem do filme ‘Coração Satânico’.

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