Tarde da última quinta-feira. Na sala de um simples apartamento na avenida Boa Viagem, três homens conversam sobre cinema. Entre tantos perspectivas abordadas, eles ressaltam a pureza da imagem e a possibilidade de dignificar o cinema. Uma arte com linguagem própria que, no início do século (e ainda hoje), era produzida maciçamente com intenção de entreter. Nada de especial nesse encontro se um dos personagens não fosse o respeitado filósofo pernambucano Evaldo Coutinho, e os outros dois não fossem Walter Carvalho (diretor de fotografia de Central do Brasil) e Marcos Enrique Lopes, diretor e roteirista do curta A composição do vazio, sobre a vida e obra de Coutinho.

O teórico Coutinho, prestes a completar 89 anos, viveu a adolescência na época da estruturação cinematográfica como um gênero artístico. Seu livro A Imagem Autônoma, publicado pela editora Perspectiva em 1974, é uma das maiores referências literárias que promove o cinema mudo e sem cor ao nível filosófico. Ousado em suas reflexões, o pensador destilou nesse trabalho análises sobre angulação, plano, o tempo fílmico, a linearidade narrativa e a linguagem do cinema. Autor de mais oito obras, o ex-professor da Universidade Federal de Pernambuco também produziu venerados e originais ensaios sobre arquitetura, filosofia e a estética da arte.

Marcos Enrique, um apaixonado pelas idéias do ‘professor’ (como gosta de se referir a Coutinho), já vinha fazendo, há cinco anos, um minucioso levantamento sobre o legado do filósofo. Inscreveu seu roteiro em diversos concursos do gênero no País mas só em novembro último, quando ganhou o prêmio Firmo Neto da Prefeitura do Recife, viu a chance do sonho virar película filmada. O que aconteceu na semana passada foi a primeira etapa das filmagens. “A prioridade nesse momento era aproveitar a disponibilidade do professor e a de Walter Carvalho que enriqueceu a produção com sua experiência”, diz Marcos Enrique.

Só no primeiro dia de entrevista com o filósofo, a equipe rodou quatro latas de filme Super 16mm, com 11 minutos de duração cada. “O espírito do filme já está nas latas. Agora é fazer registros iconográfico e de lugares do Recife que foram marcantes na vida do professor”, explica o diretor. Em uma outra etapa, talvez em junho, a equipe vai ao Rio de Janeiro e São Paulo onde intenciona colher depoimentos de personalidades influenciados pela obra de Coutinho ou que, de alguma forma, o cita como fundamental referência para o pensamento filosófico. Na lista destas personalidades, Oscar Niemeyer, que coloca O Espaço da Arquitetura, o primeiro livro publicado do professor, entre os 10 melhores do mundo.

Apesar do cansaço provocado pela forte luz dos spots e pela bateria de perguntas que respondia com bastante lucidez e simpatia, Coutinho mostravas-se animado e confessou certa expectativa para ver o resultado final do filme. “A determinação de Marcos revela interesse por qualidade e Walter é um mestre da fotografia”, comentou. Além de Walter Carvalho, a equipe de A Composição do Vazio conta com os técnicos e equipamentos da Dante Cine & Áudio, iluminação de João Sagattio e a coordenação da África Produções. Ao final das filmagens, o Acaso vai adicionar ao curta imagens digitais, cuidar dos créditos e do tratamento visual da obra.

Nos planos de Marcos Enrique, A Composição do Vazio deve ficar pronto até o próximo mês de agosto, mas a data pode ser prorrogada se a equipe não conseguir o restante da verba (algo em torno de R$ 20 mil) para concluir o documentário. “O prêmio da Prefeitura pagou R$ 60 mil, mas cerca de 17 mil foram debitados para impostos. Inscrevi o projeto na Lei de Incentivo à Cultural municipal e até agora não entendo por qual razão ele foi indeferido na categoria de
complementação de verba”, questiona.

COMPETÊNCIA – O interesse de Walter Carvalho em colaborar no primeiro filme de Marcos Enrique Lopes surgiu de uma conversa com Ariano Suassuna. Foi nas gravações do programa Folia Geral, que o fotógrafo tomou conhecimento que um documentário sobre Evaldo Coutinho estava em curso. Dos nove livros do professor, Walter só tinha lido O Espaço da Arquitetura por conta do vestibular que prestou para Designer Gráfico na Escola Superior de Desenho Industrial. Mas ele sabe que a figura de Evaldo Coutinho é mais uma, entre tantas outras, esquecida pela comemoração destes 500 anos de descobrimento do País.

“Independente de ser ou não um grande filme, o importante é que o trabalho de Marcos Enrique deve despertar o interesse das pessoas para a obra do professor”, considera Walter, sem ainda confirmar sua participação nas próximas etapas do documentário. “Se não acontecer, é exclusivamente por ter de cumprir outros compromissos já agendados”. E eles não são poucos. Antes de vir ao Recife, Walter (que carrega 33 prêmios na bagagem, sendo dois internacionais) estava em sua terra natal, Paraíba, concluindo o projeto fotográfico Varadouro, com Gustavo Moura e Juca Pontes; e procurava locações para o curta A Canga, de Marcos Villar.

Em fevereiro, terminou as filmagens Amores possíveis, de Sandra Werneck com quem fez Pequeno dicionário amoroso. Hoje trabalha em Janela da alma. Filme co-dirigido por João Jardim com lançamento previsto para o segundo semestre, cuja temática é o olhar sob a perspectiva de gente como Win Wenders, José Saramago e o poeta Manoel Barros entre outros.

Também está programada sua participação no documentário de Eduardo Escorel sobre Oscar Niemeyer; e, no final de junho, o fotógrafo fica 10 semanas rodando Abril despedaçado – o novo longa de Walter Salles Jr.