Entrevista: André Klotzel
Entrevista realizada em 2001 para o site Tô na Boa!
Por Luiz Joaquim | 17.08.2001 (sexta-feira)
Quando dirigiu A Marvada Carne, em 1986, o cineasta André Klotzel ficou conhecido no país inteiro. O filme foi visto, nos cinemas, por mais de 1,2 milhões de brasileiros, além de ter participado da Semana da Crítica no festival de Cannes. Com Capitalismo Selvagem (1996) experimentou o oposto do que conseguiu com o longa anterior: o fracasso de público. Semana passada o diretor esteve no Recife quando, em entrevista coletiva, falou sobre Memórias Póstumas, seu mais recente trabalho, estreando nessa sexta (17.ago.2001) na cidade. Klotzel falou da dúzia de versões que elaborou para o roteiro a partir da obra original de Machado de Assis; contou detalhes sobre a meticulosa pré-produção; falou sobre sua opção pela dublagem e da participação do filme no Festival de Berlim. Acompanhe a entrevista.
ENTREVISTA – André Klotzel
TÔ NA BOA – Seu primeiro longa, A Marvada Carne, é uma comédia rural. O Segundo, Capitalismo Selvagem, é uma ação urbana e agora, com Memórias Póstumas, você fez um filme de época. Que podemos dizer que há de comum entre os três?
ANDRÉ KLOTZEL – Isso é difícil de identificar porque as coisas mais significativas talvez sejam involuntárias. Um jornalista me perguntou se existia um lado de fábula em Memórias (ele não tinha visto o filme), porquê A Marvada Carne tem um lado de fábula, assim como o Capitalismo também. E eu falei, bom, de certa forma tem, mas não acontece deliberadamente. Não procuro por isso. Eu não me preocupo em criar uma linha, pelo contrário, eu acho que é muito chato para um cineasta ser um cineasta de um determinado gênero. Acaba virando uma camisa de força. Meu ideal é poder fazer um filme diferente do outro. Se tudo ficar semelhante num resultado final, acho que está relacionado às minhas limitações.
TNB – Mas dá pra perceber que Memórias guarda a mesma leveza e humor que A Marvada Carne.
AK – A semelhança é também mais evidente porque ambos têm muita narração.
TNB – O filme começou a ser pensado em 1996 e até hoje foi um processo bem longo. Como foi a participação de José Roberto Torero? Você fez o roteiro primeiro e depois ele entrou construindo as falas?
AK – Eu reli o livro em 1996. Eu me cobrava reler os livros que eu tinha lido no colégio, no ginásio por obrigação e acaba nunca lendo depois de adulto. Imediatamente eu decidi que iria fazer o filme. Estava mexendo com outro projeto que larguei e, no primeiro impulso, adaptei um roteiro de Memórias para preservar o frescor do primeiro ímpeto. A obra é um ícone da cultura brasileira, ela carrega outros significados, Existem pilhas de livros falando sobre o livro. Queria tentar não me contaminar por isso. Não que o que já foi escrito não seja interessante, mas não foi essa a motivação. Se o livro foi escrito com a leveza que foi pelo Machado de Assis eu tenho certeza que a intenção dele não foi ser impositivo. Ele tem uma leveza natural que não transpira nem um pouco de autoritarismo. Senti isso quando li e quis me aproveitar desse fato. Eu li o livro novamente umas 10, 15 vezes, li tudo o que se falou sobre o livro, li tudo o que se falou de Machado de Assis, sobre a época, li outros romances da mesma época, pra situar, Foi uma imersão na época, uma imersão no assunto para não ter que seguir regras.
TNB – E o Torero?
AK – O Torero, eu tenho uma afinidade de trabalho com ele anterior, inclusive no Belissima História das Gentes de Santos. Os curtas dele foram feitos na minha produtora com a Zita Carvalhosa (a Cinematográfica Superfilmes). Falei com o Torero assim que pensei em fazer o filme. Senti nele até uma ponta de ciúmes. Memórias tem um pouco da ironia do Torero, que é bem brasileira e que de alguma forma é descendente da ironia do Machado de Assis. A participação maior do Torero foi nos os diálogos, principalmente na narração. Essa narração foi feita umas duas vezes, antes de filmar. Os diálogos foram refeitos todos. O roteiro foi reescrito uma meia dúzia de vezes antes das filmagens.
TNB – E a narração, foi reescrita depois que o roteiro estava pronto?
AK – Para filmar, a gente escreveu essa narração uma duas ou três vezes. O Torero é que se encarregou disso. Tínhamos a vantagem da narração ser em off. Depois de filmado, o Reginaldo (Farias) fez uma gravação guia que eu pus na montagem. Aí, sentei com o Torero e fui reescrevendo tudo. A gente ficou dez dias, seis horas por dia, reescrevendo, fazendo alternativas. Aí regravamos tudo com o Reginaldo, sentamos de novo, vimos o que não funcionava, reescrevemos de novo, regrávamos mais uma vez com o Reginaldo e ainda fizemos mais uma correção de coisas que a gente achava que poderia melhorar. O filme é sobre um personagem prolixo. O personagem principal fala demais, então não tinha jeito. A palavra é muito importante. Tinha que estar muito justa.
TNB – Por que a opção de colocar no filme o narrador-fantasma interagindo nas cenas, como um fantasma que interfere nas situações?
AK – No livro ele dialoga muito com o leitor. Naquela seqüência em que o narrador-fantasma interrompe o pai discutindo com o Cubas jovem é uma coisa que existe no livro. Tem uma curiosidade: o Machado escreveu esse livro por volta de 1880 . Brás Cubas viveu de 1805 a 1869. Quando escrito, o personagem já estava morto há doze anos. É um livro de época! O sujeito já estava morto há doze anos e era claramente um fantasma. E pela teoria geral dos fantasmas, eu cheguei à conclusão de que doze anos ou 130 anos é a mesma coisa. (risos) Percebi então que, da mesma maneira que Machado de Assis escreveu falando com o leitor, poderia falar com o espectador.
TNB – É verdade que você e todo o elenco principal estudaram juntos toda a obra de Machado?
AK – Foi um trabalho de leitura do roteiro, que eu pedi para eles não interpretarem, apenas lerem. Por exemplo, descobrimos coisas legal apenas lendo: aquele encontro do jovem Cubas com o Lobo Neves quando sabem que Virgília perdeu o filho. Um olha para o outro e os dois sacam que alí tem algo estranho. Percebemos isso na leitura. Fizemos também muitos teste para transmitir aos atores como preparar a postura de corpo, o jeito de se colocar. O gestual da época.
TNB – Como foi feita esta pesquisa, por exemplo, como se descobre como era o gestual da época?
AK – Isso foi uma coisa muito interessante. Porque vem com todas as coisas, vem com a arquitetura, vem com a roupa, vem com tudo. Por exemplo, Vivian Buckup dizia que se você vê a arquitetura, principalmente colonial, predominava, então, linha fortes e altas. Isso fazia com que as linhas dirigissem o olhar. As pessoas andavam com gestos mais largos também. E a roupa pressionava, isso continha a emoção, então tinha aquela coisa romântica, que extravasa, das mulheres que choram. Tem essa relação com a arquitetura, com a postura, com a colocação no espaço. Ela conseguiu mostrar isso no filme. O olhar não era direto, era um olhar de outra forma por conta da arquitetura, da roupa, da fala e da sociedade. Ela falava que o nariz conduz o olhar. Não era o olhar que puxava o nariz. O nariz leva o olhar.
TNB – Você falou sobre a fantasia do personagem. Como é que foi conceber a seqüência do delírio, logo no começo do filme? Como foi para chegar naquela concepção visual?
AK – Aquilo envolveu muita dúvida porque era muito aberto. Como era um delírio, valia qualquer coisa, mesmo porque era diferente de todo o resto do filme. Mas a chave para resolver isso foi tentar pegar elementos da época dele, que eram elementos circenses. Não na época do Brás Cubas, mas na época do Machado. No final do século XIX, o circo era uma coisa muito presente. Tinha o início do cinema, com o (George) Méliès, que era uma bem circense, parece Fellini, e a partir disso tivemos uma liberdade bacana para criar. Se fizesse uma coisa por computador talvez destoasse.
TNB – Uma bela surpresa são as pinturas inseridas para ambientar a época.
AK – Tem um repertório grande de pinturas, na segunda parte tem muito Debret. Debret é usado quando o narrado fala da infância de Cubas. A música também é documental, é toda da época.
TNB – O filme ficou orçado em quanto?
AK – A produção foi de R$ 4,5 milhões. O maior investidor foi o Banespa. De certa forma, não foi tão penosa a fase de captação, porque tivemos um ano e meio para captar. O filme teve também uma co-produção com Portugal, que não é majoritária, mas é um protocolo de co-produção Brasil-Portugal em que são feitos dois filmes por ano e o nosso foi o escolhido de 1998. As filmagens de lá foram bancadas com recursos daquele País.
TNB – Onde foram as outras locações?
AK – Rodamos em Salvador, interior do Rio, Vassouras, Parati, interior de São Paulo, São José do Barreiro e em Campinas, onde filmamos o cemitério, porque não tinha outro cemitério de época. Depois, Portugal.
TNB- O filme esteve no Festival de Berlim deste ano. Como foi a recepção?
AK – O filme passou numa mostra oficial chamada Panorama, e teve três projeções, numa sala grande de 700 pessoas e esgotou ingressos para todas. O pessoal riu, o que eu tinha muito receio que não acontecesse porque não sabia se as pessoas iam entender ou não. Como o filme tem muitas palavras, é complicado a legendagem, quer dizer, as pessoas têm que ler muito. Foi bem aplaudido e teve um debate em seguida.
TNB – Houve problemas de sincronia de som? Que seqüências não foram feitas com som direto?
AK – Você é a primeira pessoa que faz essa observação. A pergunta devia ser “tem alguma seqüência que foi som direto?”. Tem: a de Portugal, todo o resto é dublado. Em alguns momentos resolvi sacrificar um pouquinho o sincronismo para mudar as palavras na dublagem, mas isso foi opção. Só foi por isso. Na verdade eu troquei um você por tu, algo assim pequeno. Aconteceu principalmente nas duas passagens com a Sônia Braga.
TNB – No final das contas, qual é o teu grau de satisfação com o resultado final do filme? Você chegou no que queria?
AK – Eu estou ultra-satisfeito com o resultado. Não sofremos com a produção. Tivemos recursos na medida certa. Em nenhum momento, tivemos problema de indigência material. Agora vendo a distância, não tem nada no filme que eu ache que deveria ter sido feito de outro jeito.
TNB – Quais os novos projetos da Cinematográfica Superfilmes?
AK – A Superfilmes esteve com outro filme em Gramado, que se chama Urbânia, um filme independente, o primeiro de Fábio Frederico. Um filme bem menor, que não se destina a um público tão amplo. A Zita (Carvalhosa) toca os outros projetos. Tem um documentário sobre os imigrantes que nós vamos produzir e que vai direto pra TV
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