Caché
Culpa, mentiras e videotape
Por Luiz Joaquim | 28.07.2006 (sexta-feira)
Hoje em atividade, existem diretores de cinema e
existe Michael Haneke. A distinção é importante porque
a cada visão de uma nova obra criada por esse cineasta
austríaco tem-se a impressão que estamos diante de um
cinema adiante de nosso tempo. A partir de hoje, o
Recife, finalmente, poderá conferir “Caché”
(Fra./Aus./Ale./Ita., 2005), filme que lhe deu o
prêmio de direção em Cannes 2005 – além da distinção
ecumênica e o da Federação Internacional da Imprensa
Cinematográfica durante o mesmo festival.
O cinema de Haneke não converge apenas a um ponto. Ele
não nos quer para prestarmos atenção a uma história
linear e que se resolve em si mesma. Seu cinema nos
pede para reexaminarmos nossos conceitos de
normalidade, de bem-estar e de justiça. Os temas que
conduzem seus filmes são moldados a partir de uma
inquietação psicológica e/ou comportamental e/ou
social que ele propõe aos seus personagens no mundo
que lhes cerca.
Entrelaçadas ou não, elas (as inquietações) seguem,
inicialmente, por um único trajeto mas, como fogos de
artifício, a certa altura, lá no alto, subdividem-se,
revelando sua importância e cor autônoma.
Como se não bastasse essa sua capacidade de montar um
mosaico no qual cada pedaço representa um paradigma
tentando formar uma síntese pelo todo, sua maestria em
arquitetar e contar uma história vai além de um bom
enredo. Haneke também desafia, ou talvez seja melhor
dizer, afronta o espectador com a forma, com a
constituição concreta de dirigir e editar seus filmes.
A seqüência de abertura de “Caché” já é um belo
exemplo disso, para não falar de outros momentos em
“Funny Games” (1997) e “Código Desconhecido” (2000).
Talvez Haneke seja um dos pouquíssimos realizadores
que consegue se apropriar das possibilidades que um
raro terreno ainda obscuro na linguagem
cinematográfica tem a oferecer. Se alguém duvida, é só
observar a sua habilidade em casar tensão com
reflexão, e o efeito destes dois elementos, cada um a
seu tempo, na cabeça do espectador.
No caso da tensão, basta prestar atenção na reação do
pobre público quando a trama chega ao limite que a
pressão humana pode tolerar. No caso da reflexão, como
já foi dito aqui, não há medida, há sim sensações que
acompanham o espectador por vários dias.
À primeira vista, a história de “Caché” pode ser
identificada como um libelo contra a
incomunicabilidade. Mas essa é apenas a primeira
camada de um assunto que salpica em aspectos como a
complacência de uma burguesia acomodada, como o
adormecimento das relações humanas, como a tensão
étnica da Europa, como os intransigentes conflitos no
Oriente Médio, e em como os efeitos de uma ação sua,
qualquer ela que seja, má ou boa, pode um dia
voltar-se contra você.
Não se deve pensar que questões tão sérias como estas
são postas de forma enfadonha. O que Haneke faz é
apenas pingar a tinta do problema na água, e deixar
que o espectador veja o desenho da cor se dissolvendo
com seus próprios olhos. É o que acontece na seqüência
em que o casal Georges (Daniel Auteuil) e Anne
(Juliette Binoche) se dá conta que o filho de dez
anos, Pierrot (Lester Makedonsky), pode estar
desaparecido.
É um longo plano fixo, Georges – um intelectual
simbolizado pela sua gigantesca biblioteca – está no
canto esquerdo da tela observando a esposa Anne – uma
editora de prestígio -, que está no canto direito,
falando pelo telefone. Entre os dois, uma televisão
enorme mostra um noticiário que insiste em informar as
desgraças no Paquistão. São duas realidades se
contrastando; dois problemas sérios, em suas
proporções, que buscam simultaneamente a atenção do
público. Em que prestar atenção?
A essa altura da trama, o casal – aparentemente
equilibrado – está bastante perturbado pelo envio
incessante de várias fitas VHS deixadas em sua casa.
Elas revelam que a família está sendo vigiada e que
não há segredo que não possa ser revelado. (Será a
câmera que filma o olho de Deus?) O que começa
parecendo ser inofensivo, torna-se um fantasma que
assombra a paz de espírito de George e,
consequentemente, o de sua companheira.
Desnecessário falar da alta categoria interpretativa
de Auteuil e Binoche aqui, mas talvez seja bom alertar
aos menos habituados com as propostas de Haneke de
que, na busca pelo autor das fitas VHS, o espectador
pode estar perdendo a chance de repensar sua postura
diante da vida.
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