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Festivais

58° Festival de Berlim (Sangue Negro)

Uma crônica masculina de auto destruição, por Paul Thomas Anderson

Por Luiz Joaquim | 10.02.2007 (sábado)

Berlim (Alem.) – Esse filme, Sangue Negro (There Will Be Blood, EUA, 2007), de Paul Thomas Anderson, passou sexta na competição. Acho que o mesmo ficou curto em mim, ou eu sobrei nele. Admiro o corte do tecido, mas me fez pensar sobre o prazer racional de ver um filme contra o prazer visceral de ter um filme, coisa que já tinha me ocorrido na respeitável capacidade de não se ter absolutamente nada a acrescentar de Shine a Light, filme de abertura do Scorsese. Entra aí como base uma certa cinefilia embutida que não apenas você, como espectador, tem, mas principalmente o diretor lhe traz. E nada tem a ver com conclusões apressadas de festival.

Se Shine a Light nos dá mais um show filmado dos Rolling Stones por um mestre inconteste, numa carreira de performances filmadas em praticamente todos os formatos existentes de imagem nesses 40 e tantos anos, Sangue Negro nos traz mais uma crônica masculina de auto destruição que representa uma reflexão sobre a própria cultura americana do capitalismo e da competição.

Sangue Negro é uma das obras mais prestigiadas da atual temporada, não apenas via aprovação praticamente universal da crítica americana (foi lançado nos EUA em dezembro), mas também pelas suas oito indicações ao Oscar. O filme, que teve seu lançamento em mercados internacionais sustado para que tivesse a estréia oficial no exterior em Berlim, deverá chegar no Brasil e na maioria dos mercados já nesta próxima semana.

De qualquer forma, difícil ignorar um calhamaço de cinema como esse. Na verdade, não sei bem o porquê de eu mesmo usar a palavra calhamaço, talvez pelo fato de vir de um livro. Vale observar que a palavra “épico” vem sendo utilizada livremente para apresentar o filme, e me pergunto se não há uma tentativa de sugerir algo que ele talvez não seja.

Dias antes de vir a Berlim, sentei para rever em DVD A Filha de Ryan (Ryan´s Daughter, 1970), uma coincidência, pois, sem querer entrar agora nas questões relacionadas ao filme de David Lean, suas críticas mais duras na época foram acusações de que seria uma história relativamente pequena ampliada de maneira monstra pela paisagem circundante e pelo seu Super Panavision.

O tom épico de Sangue Negro, se é que ele tem, vem provavelmente de uma saga que dura 30 anos. Anderson é ambicioso na sua imagem, mas o filme mantém-se relativamente pequeno não obstante o Panavision cristalino da fotografia. Impecavelmente bem realizado com recursos claramente limitados para olhos técnicos, os personagens em cena são não mais do que cinco, três deles de fato essenciais para a compreensão do principal, Daniel Plainview (Daniel Day Lewis).

Sangue Negro é, de fato, a adaptação de um livro de 500 páginas escrito por Upton Sinclair, originalmente intitulado Oil! Segundo Anderson (indicado ao Oscar de Melhor Diretor), que esteve na coletiva de imprensa organizada para o filme acompanhado por Daniel Day Lewis (indicado a Melhor Ator) e por Paul Dano, ator que oferece perfeito retorno para o personagem de Day Lewis, “eu vi o livro numa livraria de Covent Garden, em Londres, e não tinha como não vê-lo. A capa é vermelha com a palavra OIL escrita bem grande com um ponto de exclamação. Talvez por eu ser californiano de nascença, o tema me atraiu imediatamente”.

Publicado em 1927, Oil! originalmente contém inúmeros subtextos que não entraram no filme, como a Revolução Russa e a política em Washington. “Como sempre em tratando-se de adaptações literárias para o cinema, o livro é um belo ponto de partida, e você desenvolve a partir dali. Haviam idéias que me interessavam mais do que ao próprio Sinclair, e vice versa. A base de uma boa história é a modéstia da premissa”, disse Anderson.

Sangue Negro tem um aspecto sensorial notável, estabelecido por um primeiro rolo inteiro narrado por imagens que unem o panorâmico num sentido claramente western ao detalhe minucioso absoluto, uma mixagem de som linda (também indicada ao Oscar) e uma partitura musical que irá desafiar os mais conservadores a considerá-la música. Isso, aliás, levou membros da audiência em Berlim a assoviar e bater palmas de protesto contra a organização por acreditarem que o sistema de som estaria com algum problema. Yeah.

O uso desses sons em trilha sonora, composta por Jonny Greenwood, do Radiohead (soa como o canal esquerdo da última fase dessa banda inglesa) traz para o filme uma organicidade que distancia cada um dos seus momentos do óbvio, às vezes até indo contra a corrente dramática de uma determinada situação, e que encontra sintonia na presença de Day Lewis, no papel de Daniel Plainview. De subidas atmosféricas não muito distantes do letreiro de abertura de Contatos Imediatos do 3o. Grau, do Spielberg, a pancadas rítmicas em algum tonel da esquina, me parece que essa atração de Anderson por um certo som já mostrara-se presente no seu filme anterior, Punch Drunk Love, outro primor de planejamento sonoro.

Esse Daniel Plainview, personagem principal, é um homem leviatã que parece canalizar para si próprio uma certa casta de personagem masculino americano, um predador pessoal e social faminto por poder, dinheiro e dotado de pouquíssimas habilidades para administrar o outro, exceto de cima para baixo e, se possível, à distância. Talvez seja exatamente esse perfil dramático que tenha me afastado do filme. Não só já vi e senti esses personagens, como o próprio filme de Anderson parece esperar grandeza de tal enfoque.

Talvez Anderson espere grandeza pelo fato de esse arquétipo do americano poderoso e auto destrutivo fazer parte do perfil cultural já analisado algumas vezes por filmes que, por um grande acaso, ocupam o olimpo do cinema. Como foi lembrado por colegas na coletiva, esta figura central de Sangue Negro não estaria longe de um Cidadão Kane, que Orson Welles reprocessou a partir de Randolph Hearst. Eu acrescentaría ainda um Jake La Motta (de Touro Indomável), que Martin Scorsese retrabalhou no nível urbano a partir do boxeador nova iorquino que afastou-se de tudo e de todos num impressionante processo de auto destruição. Vito Corleone também não está longe.

Não é difícil também olhar para as imagens panorâmicas de Anderson e seu fotógrafo Robert Elswit (imagens de um cinema clássico “filme-película” muito em sintonia com o que Roger Deakins fez com os Coens em No Country For Old Men) e não pensar em obras que versaram sobre o estofo formativo da sociedade americana, de Vinhas da Ira, de John Ford, a Era Uma Vez no Oeste, de Sergio Leone, chegando novamente no filme dos Coens que, me parece, analisa um certo histórico de violência americano.

Ficamos com Plainview, nome simbólico não só para as composições largas do filme, mas também para a onipresença do personagem nessa obra. O desejo de Plainview para com os outros sugere mesmo que fracos não tem vez, e é definida num diálogo revelador sobre seu desinteresse pela humanidade – “Eu tenho a competição dentro de mim. Às vezes só penso em ganhar dinheiro para ficar longe de todos”. Ele também mostra-se pré programado para a auto-destruição, algo poeticamente marcado pelo titulo original (sangue será derramado). É um elaborado exercício sobre um personagem já sentido antes.

Obviamente que Anderson, talentoso, injeta a sua energia própria. Ao procurar os toques autorais desse jovem americano, vale lembrar do seu aparente interesse pela idéia de família (Hard Eight, Boogie Nights, Magnólia, Punch Drunk Love) e a presença da religião, tanto no filme como corpo como nas suas narrativas (Boogie Nights, Magnólia).

No entanto, em Sangue Negro, Anderson parece menos carola do que o habitual (nada contra, a princípio, gosto dos seus filmes anteriores), e mais duro em relação à idéia de esfacelamento da família através do desejo de poder e dinheiro. Há cenas importantes em templos onde demônios são exorcizados, e essas cenas, através do personagem Eli, me lembraram a doutrina sexual do personagem de Tom Cruise em Magnólia.

Sobre estilo, se Welles usa a energia luxuosa da câmera de cinema, e Scorsese (para ficar nos dois exemplos aqui trazidos) trouxe essa dramaticidade para o apartamento vizinho, Sangue Negro parece mimetizar esse americano como sendo produto da própria terra, do próprio solo americano. É do solo que surge não apenas Daniel Plainview, mas aquilo que o fará rico. Na verdade, o homem sai do chão logo na abertura.

O impacto da atuação de Lewis revelou-se grande também na imprensa em Berlim via perguntas atordoadas de jornalistas na coletiva, em especial sobre o significado, para um ator, de acessar alguém assim. O ator inglês respondeu refletindo que “atuar significa também sentir atração por aquilo que você não quer”.

Anderson completou afirmando que, da mesma forma, fazer cinema é como procurar petróleo ou garimpar. Você se ausenta de casa por três meses, e ao longo do processo vai fazendo umas descobertas, acha uma pepita aqui, e vai ficando ganancioso, e isso te leva a outras descobertas e a outras demonstrações de ganância pessoal e material, ou artística”.

Eu escrevi essa semana sobre Sweeney Todd e o fato de muito se reclamar de Hollywood, mas que é Hollywood quem banca algumas das maiores insanidades autorais do cinema. E só temos que agradecer por isso. Mais uma vez, numa safra tão autoral, onde filmes de grande porte, ao que nos parece, só poderiam ser feitos dessa forma, por diretores de visão claramente americana, vale destacar a capacidade que alguns desses filmes têm de nos levar ao incomum, apresentando retratos culturais corajosos e perfis humanos desagradáveis que não fazem parte do mercado.

Nesse sentido, os 15 minutos finais de Sangue Negro confirmam o filme forte que vinha sendo construído em direção a esse desfecho, e coerência é um dos elementos mais ausentes no cinema, preocupado demais com o lucro. Essa seqüência final tem algo de uma identidade americana particular, com destaque para o cenário da coisa em si, perfeitamente ilustrativo de uma certa decadência da riqueza. É uma seqüência estranhamente bastarda, filha de Kane ou Sunset Boulevard, e realizada sem medo.

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