Agora ou Nunca
Mike Leigh não deixa a alma embrutecer
Por Luiz Joaquim | 27.05.2007 (domingo)
– originalmente publicado no jornal Folha de Pernambuco sob o pseudônimo de Pedro Badaró Silveira em 9 de outubro de 2003
Parece haver uma recorrência nos filmes Mike Leigh – diretor de Agora ou Nunca (All or Nothing, Inglaterra, 2002), filme que entra em cartaz no Cinema da Fundação. Trata-se de uma catarse que é imposta à vida de seus personagens. Via de regra, os papeis que escreve e dirige sofrem uma (saudável) conscientização provocada por uma lembrança fortemente emocional e/ou traumatizante, até então reprimida. Foi assim nos recentes Topsy-Turvy, Garotas de Futuro e Segredos e Mentiras, e é assim em Agora ou Nunca.
Mais uma vez Leigh nos brinda com um elenco afinado para traduzir o melancólico dia-a-dia de três famílias num subúrbio londrino. O casal central da história é formado por um taxista (Timothy Spall) e uma caixa de supermercado (Lesley Manville). Vivendo já há bastante tempo sob uma fria cordialidade, eles criam o gordo Rory (James Corden), um adolescente hostil a tudo e a todos (inclusive a si mesmo), e a introspectiva Rachel (Alison Garland). Uma abnegada que trabalha numa clinica geriátrica.
Completando a geografia humana, existem duas famílias vizinhas: uma formada por uma alcoólatra e sua filha que não a respeita; e um outro grupo, revelando a inábil comunicação entre uma mãe com sua filha que descobre a gravidez indesejada.
Mas é no casal central que Leigh concentra-se para nós dizer que naquela cortesia gélida em que levam suas vidas, figura um fantasma que lhes assombra, como uma ternura perdida que ficou para trás. Ternura que foi amor, e que ainda poderia voltar a ser, se as circunstâncias ajudassem. Com extrema delicadeza, Leigh nos fala aqui do embrutecimento sentimental (causado pela rudeza do cotidiano) que atinge a todos nós, e dá, com triste precisão, a dimensão dessa fatalidade.
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