Ulysses (1955)
Revi, após 30 anos, com prazer esse épico de Dino de Laurentiis
Por Luiz Joaquim | 16.08.2007 (quinta-feira)
Esse texto não é uma crítica. Nem tem mesmo uma função jornalística, no sentido de anunciar algo novo, pois vou falar de Ulysses (Itália) filme de Mario Camerini, uma superprodução realizada por Dino De Laurentiis em 1955 e estrelada por Kirk Douglas Anthony Quinn e Silvana Mangano. Esse texto é mais um registro nostálgico de sensações por mim vivida na primeira infância e reascendida na noite de ontem (15 de agosto de 2007) quando revi o filme, em DVD, mais de 30 anos depois. A revisão/reencontro veio cercado por algumas coincidências, ou seja lá que o que ‘coincidências’ signifique.
Foi lá pelos meus cinco, seis anos de idade que minha memória registrou, e mantém até hoje com certa clareza, as imagens do primeiro filme que assisti. Naquela época não sabia que se tratava de “Ulysses” e nem tinham a menor noção do quão importante era para a história e para a literatura a obra escrita por Homero, pela qual o filme era adaptado. Não tinha tampouco idéia da força do nome de Kirk Douglas ou Dino De Laurentiis para o cinema. Eu era um menino.
O que eu sabia era que naquela noite, situada entre 1975 e 1976, eu estava tendo meu primeiro alumbramento pelo cinema. Era madrugada quando o filme exibia. Talvez uma sessão do extinto ‘Coruja Colorida’ da Rede Globo ou, quem sabe, uma outra sessão qualquer dedicada a filmes na Rede Tupi. Estávamos eu, meu pai e meu irmão mais velho hipnotizados pela TV, acompanhando as aventuras do guerreiro grego.
Agregado às imagens meio turvas que hoje tenho na cabeça daquela sessão, guardo a forte sensação de aconchego e segurança, na salinha da nossa minúscula casa, ao lado do meu pai e irmão durante aquela aventura televisiva pela qual o ciclope gigante Polifemo, filho de Netuno, me perseguiu durante o sono após o fim do filme.
Tive um pesadelo horrível naquela mesma noite. Em sonho, escutava pancadas fortes e seqüenciadas que associava aos passos do gigante de um olho só. Como num filme de Laurentiis, eu via, em meu sonho, num plano aéreo, a aproximação de Polifemo, ele caminhava em direção a minha pequena casa e era ela que seu pé enorme ia esmagar, comigo e minha família toda lá. A morte iminente me fez acordar e ficar assustado na escuridão do meu quarto e da minha certeza que o fim estava chegando para todos nós.
Em seu romance “A Ignorância”, L’Ignorance – que comecei a ler coincidentemente (?) ontem à tarde – o escritor nascido na República Checa, Milan Kundera, lembra que foi Homero, com “A Odisséia”, o responsável pela fundação da idéia de ‘nostalgia’ na literatura. Homero fala de Ulisses, que foi guerrear em Tróia onde ficou por dez anos, e durante seu retorno, que durou mais dez anos, se deparou com a ira dos deuses. Sofreu como prisioneiro do gigante Polifemo (filho de Netuno) além de ter sido amante/refém de Cirse/Calipso que, por ele apaixonada, não deixava Ulisses partir da ilha onde o mantinha confortavelmente.
De certo modo, rever “Ulysses” ontem me levou de volta a um momento puro de minha vida. Lá, minha maior ameaça era ser esmago por um ciclope imaginário. Curioso é que, enquanto Ulysses demorou duas décadas para voltar a Ítaca e reencontrar sua esposa e rainha Penélope (vivida no filme pela linda Silvana Mangano, de “Teorema”, “Morte em Veneza”, “Duna”), essa minha viagem de volta àquele lugar/tempo da minha infância, custou 30 anos para acontecer.
Por conta de uma febre que só fazia crescer (ainda a tenho enquanto escrevo agora), também tive uma péssima noite recheada de pesadelos quando fui para a cama após rever o filme. A noite foi igualmente horrível como a de três décadas atrás, mas o monstro era outro. Não era um gigante assustador, mas sim eu mesmo.
Enveredando para uma avaliação mais crítica sobre o filme de Camerini, só tenho elogios. Mesmo com recursos tecnológicos que hoje são dados como parcos para efeitos visuais, a produção consegue ainda hoje entusiasmar. Seja pelas reviravoltas no enredo de “A Odisséia”, seja pelo roteiro enxuto e objetivo, seja pela interpretação apaixonada de Douglas, Quinn e Mangano (linda).
A magnitude da historia de Homero também dá margens para valores dignos a serem observados a cada opção tomada pelo herói. Da vitória da inteligência de Ulysses sobre a força bruta do gigante, quando o embebeda para libertar-se do cativeiro. Quando ordena aos marinheiros que não lhes dê ouvidos enquanto escuta, amarrado ao mastro, o canto enlouquecedor das sereias. Quando abdica do conforto da ilha de Circe/Calipso para ir atrás de sua origem, sua família em Ítica e, inclua-se aí sua estratégia ao chegar a terra natal, disfarçado de mendigo para ver quem ainda lhe é fiel, mesmo tendo passado 20 anos.
Há ainda a fidelidade de Penélope, que hoje só parece caber mesmo numa epopéia como “A Odisséia”. Como foi dito num roteiro de Kieslowski, num outro filme visto por mim recentemente no cinema (“O Inferno”, L’Enfer, 2005): “não temos mais espaço para tragédias em nossas vidas, hoje sem fé, apenas, no máximo, grandes dramas”
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