Santiago: Reflexões Sobre o Material Bruto
O bom filho a casa volta
Por Luiz Joaquim | 21.09.2007 (sexta-feira)
Quando, num filme, se dá com precisão o encontro entre o bom cinema e a fragilidade do homem, não é raro que esse produto se transforme numa referência entre os seus. “Santiago – Reflexões Sobre o Material Bruto” (Brasil, 2007), de João Moreira Salles – em cartaz no Cinema da Fundação – é assim. A primeira informação que dão sobre o filme é que Salles (de “Entreatos”) resgatou as imagens captadas em 1992, feitas do ex-mordomo de sua família, Santiago Merlo, e as retomou em 2005 para a montá-las e concluir o documentário inacabado. A informação não é falsa, mas é incompleta.
Isso porque “Santiago” não fala (apenas) do mordomo, mas também da memória dos homens. Chama a atenção para a grandeza tranqüila, discreta que os anônimos guardam e para a maneira como podemos reproduzir a sua memória. Nesse sentido, o de descascar a forma para registrar uma vida, “Santiago”, o documentário, fala de si próprio. É metalinguagem, mas sem a pompa professoral. O diretor João Moreira também não escapa deste raio-x, ou melhor, é a espontânea exposição explícita de si próprio aqui como homem em reencontro com seu passado, cheio de dúvidas e incertezas sobre o material que tem nas mãos, que dá ao documentário a leveza, profundidade e (não esqueçamos) a beleza que nos apresenta.
Quando filmou Santiago, Salles tinha 30 anos. Hoje, aos 44, e enquanto editava as imagens e revia o minucioso roteiro que preparou para captá-las, percebeu a insipiência de suas idéias originais à época. Percebeu inclusive que cada opção de enquadramento claustrofóbico e opressivo – inspirados em “Viagem a Tóquio” (1953), de Yasujiro Ozu – refletia apenas a postura autoritária, que se revela também na forma que conduzia as entrevistas com seu mordomo, ou seja, uma postura vertical. Postura pela qual, o cineasta, em 1992, revelava não estar interessado no que o homem Santiago tinha para dar, mas sim num produto asséptico, de forma fria e sem vida. Santiago era mais um objeto, em seu pequeno apartamento recheado de memórias esquecidas. O filme seria assim também pois, na época, Salles era imbuído pela cegueira que acompanha a maioria das certezas.
Foram necessários 13 anos para surgir em Salles o mais nobre dos motores entre os artistas: a dúvida. Houve um ingrediente a mais aqui. Em 2005, o cineasta se encontrava numa crise profissional e num forte saudosismo da infância, da vida em família e da “Casa da Gávea” (hoje Instituto Moreira Salles). Santiago Merlo ajudou a criar Salles até seus 20 anos de idade, e reencontrá-lo nas imagens guardadas era uma forma de reencontrar a si próprio, reencontrar um passado que cada vez mais se afasta. Isto, e muito mais, está declarado sem nenhum pudor no texto de João, dito no filme em off pela voz do irmão Fernando Moreira Salles.
Embalado pela leveza do musical “Roda da Fortuna” (1953), um dos
filmes preferidos de seu mordomo, Salles nos confessa que, durante as filmagens do documentário, Santiago Merlo tentava lhe dizer, com o seu zelo pelo memória dos esquecidos, que ninguém merece mais ou mais atenção, mas sim igual atençaõ, e que a vida passa lenta, mas não suficientemente lenta. Salles não entendeu o recado.
Por ser tão íntimo, Salles pensou em não lançar “Reflexões Sobre o Material Bruto” comercialmente. Não acreditava que pudesse interessar a alguém. Os prêmios que recebeu do festival internacional de documentário Cinéma du Réel, na França, e o sucesso em Amsterdã e no Festival Internacional de Documentários – É Tudo Verdade o fez mudar de idéia. Nos agradecemos.
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