Amigos de Risco
Carlão fala do longa pernambucano de Daniel Bandeira
Por Carlos Reichenbach | 30.04.2008 (quarta-feira)
– a crítica abaixo foi escrita em 2008 por Carlos Reichenbach a pedido do editor do CinemaEscrito.
Histórias de amizades incômodas já renderam alguns filmes notáveis como, por exemplo, O AMIGO AMERICANO, da época em que Wim Wenders ainda era inspirado.
AMIGOS DE RISCO, o longa metragem de estréia de Daniel Bandeira , parece beber da mesma fonte, mas, de certa forma, vai muito além do exercício noir do diretor alemão. Wenders buscava o distanciamento do espectador nos eventos irreversíveis; Bandeira faz da câmera um quarto personagem, colocando quem acompanha o filme no papel de testemunha ativa do calvário dos protagonistas.
As aventuras (ou desventuras) de dois jovens, que atravessam a cidade à noite, tentando levar um amigo ao hospital, são narradas com a mesma intensidade de um filme de horror. No caso, não é medo que sentimos, mas aflição. Num determinado momento do filme, somos convidados a experimentar sensações extremas de insegurança, angústia e impotência.
Pode-se dizer que o filme se divide em duas partes – subvertendo a construção convencional de três atos. Os primeiros quarenta minutos apresentam os três protagonistas na cadência de uma crônica urbana, dentro da premissa de Montaigne: “Não se consegue o universal senão através do ultra local.”. Sabemos que o filme foi rodado em Recife somente pelo sotaque dos atores. Bandeira teve a sabedoria de escolher locações que poderiam ser encontradas em qualquer periferia, seja de São Paulo, Porto Alegre, Rio de Janeiro, ou mesmo Paris. A solidão em família, o vazio do trabalho indesejado e a inconveniência de um amigo desleal são feridas universais.
É na segunda parte, a longa jornada noite adentro rumo ao inesperado, que o filme inova e emociona. Sem o grilhão da amarração narrativa, Bandeira investe exclusivamente na criação de atmosferas. A impressão neste momento é a de que nos é arrancada a plataforma dos pés, nos obrigando o vôo livre em direção ao inesperado. Isto é o que eu chamo de cinema.
A opção em deixar a câmera agir livre e solta em relação aos atores me lembrou bastante outros dois ótimos filmes: O INVASOR, de Beto Brant, e MEU MUNDO EM PERIGO, de José Eduardo Belmonte. Alem do que, em O INVASOR somos também abandonados na madrugada de uma cidade às moscas, e no filme de Belmonte é a fatalidade que oferece algumas revelações.
Mas AMIGOS DE RISCO, curiosamente, me remeteu ainda mais à tradição social, amarga e sem firulas da dramaturgia de Gianfrancesco Guarnieri; especialmente do episódio por ele dirigido no longa metragem VOZES DO MEDO (concebido por Roberto Santos). Neste contundente segmento, Guarnieri mostra um pequeno grupo de operários que, no dia do pagamento, saem para tomar umas e outras, assistir strip-tease e, quem sabe, “pegar” mulher. A peregrinação noturna deixa também um saldo negativo e doloroso.
O mérito mais evidente do filme de Daniel Bandeira é a credibilidade de seus protagonistas. Além de bem dirigidos e convincentes, eles imprimem com exuberância a patética angústia do “povo amante” sem sorte ou futuro. Nada mais brasileiro.
No mais, é preciso destacar a participação magistral do ator Irandhir Santos (o amigo incômodo). Não é exagero afirmar que se trata de um dos melhores atores brasileiros da nova geração. Bastam dois segundos de Irandhir na tela para que a intuição do espectador detecte a proximidade do abismo.
Para aqueles que enxergam o cinema como uma aventura emocionante de descoberta humana, AMIGOS DE RISCO é uma experiência inesquecível.
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