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Reportagens

O que está por trás de uma legendagem errada?

Equívocos das legendagens e seu motivos

Por Luiz Joaquim | 15.08.2008 (sexta-feira)

Em determinada seqüência do filme Outono em Nova York, Richard Gere caminha ao lado de Anthony LaPaglia pelas calçadas de Manhattan e confessa que transou com a ex-namorada no sótão da casa do amigo, enquanto Winona Ryder, a atual namorada, o aguardava na sala de baixo. LaPaglia vira-se para Gere e diz cristalinamente: “I’m sorry about what you did”. Quem já folheou qualquer cartilha de inglês no 2º grau entende que o amigo de Gere quer dizer: “Sinto muito pelo que você fez”; mas o que espectador desavisado lê nas legendas é: “Quem mandou você fazer isso?”

Esse é apenas um exemplo entre os infindáveis casos da legendagem no cinema que faz o público um pouco mais atento questionar o porquê de experientes profissionais de tradução derraparem na nacionalização de produções estrangeiras. O caso específico de Outono em Nova York não é tão cabeludo a ponto de interferir na lógica do enredo, mas certas pérolas são tão incoerentes que não respeitam o mínimo bom senso. Algumas são clássicas como a do filme Tomates Verdes Fritos, no qual aparece um jornal estampando a manchete: “Wife kills husband and sells his body parts to aliens”. Mesmo com a ilustração de um disco voador ao lado das palavras, o tradutor escreve “Mulher mata marido e vende pedaços do seu corpo para o estrangeiro”.

Há 10 anos trabalhando nesse ramo, Monika Pecegueiro do Amaral, explica que são vários os motivos pelos quais algumas legendas não se atêm às traduções literais ou, simplesmente, saem erradas. Uma das razões encontra resposta nas limitações de caracteres por cada linha de legenda (34 para o cinema. 30 para o vídeo). “É preciso um poder de síntese bastante afiado, o que muito aproxima meu trabalho com o ato de fazer poesia – minha paixão maior”.

“Por vezes, somos obrigados a resumir a idéia com uma construção oracional diferente da original, mas sem mudar sua essência, para que ela encaixe em 68 toques divididos por duas linhas”, diz. Entre os gêneros de sua predileção para trabalhar, Monika ressalta os desenhos da Disney justamente por desafiá-la a combinar métricas e rimas. “Muitas palavras precisam carregar um sentido triplo”, brinca.

Heloisa Martins Costa, que junto a Monika Pecegueiro e Paulo Frederico Costa formam a tríade mais respeitada dessa área no País, diz que outro detalhe que entrava a tradução precisa são os roteiros defasados que vêm acompanhando as fitas de serviço do filme a ser nacionalizado. “Alguns roteiros, de 50, 60 páginas, ainda indicam o primeiro tratamento que a história recebeu, antes de ser rodada. Quando acompanhamos a narrativa assistindo o filme, escutamos um personagem dizendo que vai encontrar outro às 10h, e não às 9h, como está no papel. O mesmo acontece com quantias. O roteiro diz um valor e acontece de o ator falar outro. É preciso atenção para o erro não resvalar na legenda”.

TRAUMAS – Trabalhando, atualmente, com os filmes das distribuidoras Europa e Lumière, Heloísa ficou conhecida, no início da carreira, por traduzir muitos filmes europeus. Ela conta que a primeira experiência foi traumática. Em 1988, quando chegou do Velho Mundo, onde havia concluído sua pós-graduação na Universidade Paris – Sorbonne, Heloísa se apresentou ao Consulado Francês, no Rio de Janeiro, disposta a trabalhar como tradutora. O serviço que lhe deram foi nacionalizar os filmes de Jean-Luc Godard do acervo do consulado. E ela começou logo pelo verborrágico A Chinesa. “Tinha um detalhe complicador. Os filmes eram em 16mm, o que reduzia a quantidade de caracteres de 34 para 23 por linha. Levei um mês para fazer o serviço e pensei em nunca mais trabalhar com isso”, recorda.

Outra experiência nada agradável aconteceu com Rapsódia em Agosto, de Akira Kurosawa. O filme, falado em japonês, estava chegando para o antigo FestRio, em 1991, e Heloísa tinha menos de três dias para traduzi-lo a partir de um tosco roteiro em inglês. Debruçada sobre o script por mais de 12 horas ininterruptas, a tradutora trabalhou sem ver nenhuma imagem do filme. Heloisa lembra que não podia identificar qual o sexo dos atores apenas pelo nome dos personagens. O resulto é que, na projeção, enquanto parte do elenco masculino falava, a legenda mostrava coisas do tipo: “Eu estou cansada”.

Para não cometer gafes, Monika Pecegueiro (fluente em inglês, espanhol e italiano) não hesita em procurar sua “rede de consultores” ao encarar filmes de idiomas “exóticos” como o chinês, tailandês ou o mandarim. “Com um decente roteiro-guia em inglês, como o que acompanhava O Caminho Para Casa, do chinês Zhang Yimou, a tradução saiu tranqüila. Isso não aconteceu com o alemão Corra Lola, Corra. Como tradução de tradução é uma coisa horrível (no caso, do alemão para o inglês, e do inglês para português), me vi na necessidade de convidar um amigo com proficiência em alemão para ajudar”, revelou.

Como o detalhamento técnico de muitos filmes modernos requer uma linguagem peculiar, Monika também apela para profissionais de áreas especificas para aplicar o jargão que cada um costuma usar. “Essa adequação é o que diferencia uma tradução apenas correta para uma outra mais caprichada”. Em Maré Vermelha, por exemplo, ela trabalhou assessorada por um comandante da Marinha do Brasil.

Apesar da pós-graduação na Universidade de Santa Bárbara, na Califórnia, Monika não se sentiu à vontade para nacionalizar, sozinha, a versão contemporânea de Hamlet (filme de Michael Almereyda, com Ethan Hawke). “Mesmo transcorrendo nos dias de hoje, o filme e falado num inglês arcaico, que requer extremo conhecimento da escrita de Shakespeare”. Para fazer o serviço, a tradutora exigiu da distribuidora a colaboração de Márcia Martins, doutorando em traduções de Hamlet para o português. “O resultado ficou lindo”, diz orgulhosa.

Já Heloísa sofreu na hora de transcrever para nosso idioma as falas do iraniano Filhos do Paraíso, de Majid Majidi. “O filme era falado no dialeto mais praticado no Irã, o farsi; e o roteiro em inglês só trazia frases sem nexo. A solução foi ‘casar’ o sentido das falas observando a expressão dos atores”, recorda. Na contra-mão das dificuldades, a tradutora diz que filmes de ação, como os monossilábicos de Schwarzenegger, são os mais rápidos de traduzir. “Os diálogos são poucos e o barulho é muito”.

QUALIFICAÇÃO – Além dos desenhos da Disney (distribuídas pela Buena Vista), Mônica Pecegueiro do Amaral nacionaliza os filmes da Columbia/TriStar, Lumière, Fox/Warner e as produções da brasileira Conspiração (de Eu, Tu, Eles). Foi ela, por exemplo, quem colocou frases em espanhol nas imagens do documentário Pierre Verger – Mensageiro de Dois Mundos, de Lula Buarque de Holanda, para concorrer no Festival de Havana.

Lecionando aulas de tradução para cinema na Pós-graduação da PUC-SP, Pecegueiro insiste que para obter o sucesso nessa função, uma boa formação em literatura e um rico conhecimento em teoria lingüística são imprescindíveis. “Além desses instrumentos fundamentais, o tradutor precisa de fluência na escrita. Somos como escritores que precisam contar uma bela história em português, e fazer jus aos grandes roteiristas como Wood Allen, Scorsese e tanto outros”, conclui.

Condições de trabalho, remuneração

A condição ideal para o tradutor nacionalizar uma produção estrangeira reza que o filme venha acompanhado por uma fita em VHS e um roteiro-guia em inglês, devidamente marcado com a ‘pietagem’. Este último termo técnico se refere à indicação das partes pelo qual o rolo de um filme é dividido. Enquanto numa cópia de serviço de vídeo o time-code situa a extensão da história pela contagem do tempo, no roteiro, o filme é dividido em feet (pé), facilitando a localização dos diálogos para o tradutor.

Para entender como esse indicador ajuda o profissional, basta saber que o longa
Snatch – Porcos e Diamantes, de 97 minutos, tem a pietagem de 9.208 pés. O filme, dirigido por Guy Richards (com os indecifráveis diálogos de Brad Pitt), está recebendo 1.446 legendas por Monika Pecegueiro do Amaral, para ser lançado em maio pela Columbia. “90% dos filmes nos chegam com essa condição de trabalho, o que nos possibilita trabalhar com poucas margens de erro”, diz a tradutora, que hoje se ocupou com Beatles – Os Reis do Iê Iê Iê. O filme, rodado por Richard Lester em 1964, ganhou cópia nova e som remasterizado.

Para Heloisa Martins Costa, “num mundo perfeito, teríamos 20 dias para traduzir um filme. Mas a realidade não é bem assim. Muitas vezes a cópia fica presa na alfândega e nos chega a cinco dias da estréia em todo o País”. Depois do serviço feito, ela gosta de colocar o filme para ‘dormir’ por 24 ou 48 horas. Ou seja, depois de dois dias de distanciamento, Heloísa torna a ver o filme de uma só vez para consertar possíveis incongruências da própria tradução. Ultimamente, a profissional tem dedicado seu talento em Mansfield Park, de Patricia Rozema; além de Malena, nova produção de Giuseppe Tornatore.

DINHEIRO – A frenética labuta dos tradutores de cinema no Brasil revela uma profissão mal-remunerada em vista da demanda de especialização que o serviço requer. “Traduzir exige investimento em pesquisa, educação e profundo domínio da língua”, diz Pecegueiro. Em conformidade com a tabela do sindicato dos tradutores, a remuneração para cada parte de 10 minutos traduzidos em um filme para cinema é de R$ 80. Considerando a duração padrão de um longa em 100 minutos, o tradutor leva R$ 800 por filme. “Hoje me dou o luxo de só trabalhar com uma média de 10 ou 12 filmes por ano. Prezo pela qualidade do serviço”, diz Heloísa que, como a colega Pecegueiro, completa a renda mensal com outras atividades ligadas à tradução.

Processo técnico de legendagem utilizado nos laboratório brasileiros. A legendagem nos festivais internacionais do Brasil

Depois de os tradutores escreverem a versão nacional dos diálogos de filmes estrangeiros, os textos vão para os laboratórios que efetuam a legendagem no País. Duas empresas fazem o serviço no Brasil: a Labo Cine, no Rio de Janeiro, e a Curt-Alex, em São Paulo. Havia uma terceira no Rio, a Titra, que está retirando seus serviços do mercado. Por mais de trinta anos, a Titra legendava os fotogramas, um de cada vez, por um antigo sistema de carimbo ácido que retirava a gelatina do filme. Dessa maneira, as palavras apareciam na tela em forma de transparência.

A consolidada Labo Cine, com mais de 46 anos de experiência, e a Curt-Alex (atuando há 17 anos) utilizam um processo ótico, sem queimar a cópia original. As legendas são fotografadas em uma película à parte, para depois uni-la a outras duas: a do filme original e a sonora. “Da união dessas três películas, sai uma banda positiva. Essa matriz vai servir para fazermos quantas cópias nacionalizadas for preciso”, explica o gerente comercial da Curt-Alex, Sílvio Porto.

O que já é normalmente caótico fica insano nos casos dos festivais internacionais, cujo acervo de filmes estrangeiros chega a mais de 300 títulos exibidos em poucos dias. Na última edição da Mostra Internacional de Cinema de São Paulo, 190 longas e cerca de 90 curtas precisaram receber legendas.

Nesses, casos, o processo de legendagem precisa ser veloz e acontece simultaneamente a projeção do filme. No Brasil, a marca Subtitling Online, da empresa Running S/C, está em boa parte destes festivais (Mostra-SP; Brasília; Fica – GO; Anima Mundi – Rio/SP; Jean Rousch -SP; Festival Japonês -SP).

Marina Mariz, da Subtitling, diz que a solução para a instantaneidade veio com a criação do software (sugestivamente chamado de Transpotting) desenvolvido pela empresa. “Cada sala é equipada com um projetor de vídeo e um PC levando nosso software, que alem de ter o modo de exibição de legendas em cinema, também pode ser usado pelos tradutores para editar os textos”, conta Marina.

A projeção dos diálogos (previamente traduzidos), aparece no roda-pé da tela, em conformidade com a situação que ali aparece. Para trabalhar na Mostra-SP 2000, a Subtitling arregimentou 12 tradutores fluentes em inglês, francês, espanhol, alemão e russo. Além disso, mais 25 profissionais ficaram responsáveis pelo apoio técnico e liberação das legendas durante as exibições.

Se na legendagem padronizada o período ideal para nacionalizar um longa é de 20 dias, Marina salienta que na legendagem dos festivais, três dias já seria maravilhoso, mas nem sempre sua equipe dispõe desse tempo. “Na Mostra-SP, recebi um filme às 14h, e ele seria exibido às 20h do mesmo dia. Foram quase duas mil legendas. Até hoje eu me espanto por ter conseguido. Acho que é o pique de Mostra, a energia muito positiva que rola, para que tudo de certo”, encerra.

Legendas legendárias

1) No trailer da sátira Todo Mundo em Pânico, enquanto um rapper dizia “I’ve got the move” (algo como ‘eu tenho a ginga’), as letrinhas na tela informavam “Eu tenho o filme”.

2) Pelas legendas de certos filmes policiais, alguns detetives recebem a informação que um coronel está chegando para examinar a vítima. Na realidade, o “coroner” pronunciado pelo norte-americano é um médico-legista.

3) Em alguns filmes americanos, clientes pedem ao garçom para conferir a conta gritando: “Check!”. Mas a legenda faz o brasileiro entender que ele está pedindo um talão de cheque.

4) Em Outono em Nova York, nosso olho vê na legenda de Antony LaPaglia que ele ralha com Richard Gere: “Quem mandou você fazer isso?”. Mas nosso ouvido escuta ele dizer que se condói com o problema do amigo: “I’m sorry about what you did” (Sinto pelo que você fez).

5) Em Tomates Verdes Fritos, a manchete do jornal estampa que uma mulher esquartejou o marido e vendeu os pedaços para alienígenas, mas a legenda transforma o ato numa transação internacional, dizendo que tudo foi vendido para o estrangeiro.

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