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Críticas

Ensaio sobre A Cegueira

Para enxergar melhor

Por Luiz Joaquim | 12.09.2008 (sexta-feira)

Quando lançado em 1995, o livro do português José Saramago, “Ensaio Sobre a Cegueira”, estimulou uma parte da crítica a enquadrá-lo como uma forte bandeira asteada contra o preconceito com a AIDS. Nada mais redutor e limitado a um momento histórico-político. Hoje, quando a adaptação feita para o cinema por Fernando Meirelles entra em circuito comercial no Brasil, parece que está bem claro onde é o cerne da questão: em nós mesmo, diante de uma situação desesperadora.

E é exatamente por seguir esse argumento tão simples que seus derivados são riquíssimos. Coisa de gênios como Saramago. Para quem não sabe do que se trata, basta entender que tudo começa quando um oriental (Yusuke Iseya), dirigindo seu carro, interrompe o transito por não enxergar mais. Logo em seguida, um ladrão (Don McKellar, também roteirista do filme) também é afetado, e logo depois um oftalmologista (Mark Ruffallo).

O detalhe é que ao invés da ausência total de luz, a cegueira é branca, como uma iluminação absoluta que de tão forte, cega. Funcionando como uma epidemia, o número de enfermos cresce tanto que o governo toma a atitude de encerrá-los num galpão, fornecendo apenas comida, sem nenhum outro tipo de assistência.

Presos a uma nova realidade privatizante, que os deixa ignorante – “palavra que guarda muito julgamento”, como diz a personagem de Julianne Moore, como a esposa do oftalmologista -, o crescente grupo começa a voltar à barbárie. Entra em jogo a cobiça, dominação, fome, o que leva ao relaxamento de preceitos morais básicos da civilização, como a prostituição e assassinato.

Ok, o mérito até aqui ainda é todo do mestre português, mas, ao chegar no cinema vê-se a destreza de Meirelles, sem nunca esquecer sua equipe técnica, em particular seu fiel escudeiro o fotógrafo César Charlone.

A opção óbvia, pela tradição do cinema, seria “traduzir” em imagens a cegueira dos afetados pelo ponto de vista deles, com uma câmera subjetiva. Charlone, entretanto, usa focos e desfocos, enquadramento cortados, contrastes fortes seguidos por fracos, e muitas falas ditas em off (desorientado o espectador sobre sua origem), além da bastante utilização de falsos reflexos em espelho, ou união, deles para sugerir uma sensação de desconforto. Mas o incômodo maior deixado é mesmo outro.

Na literatura há uma tradição que se agarra na idéia de que os cegos teriam uma perspectiva mais limpa e profunda das coisas da vida. Isso desde de a Grécia Antiga, com os contos sobre o profeta Tiresias (história que também rendeu um belo filme). O cinema não deixa por menos e há uma tendência quase ridícula de atribuir um elevado nível de pureza aos cegos (lembro de “Os Amantes da Ponte Neuf”, 1991, de Leos Carax).

No caso de “Ensaio sobre A Cegueira”, a coisa é muito mais sofisticada. Ultrapassa o nível pessoal, atentando mais para o social. E Meirelles não deixa escapar as nuanças do romance lusitano, lembrando-nos também de pequenos prazeres – sentir o calor do sol, tomar um banho, beber água limpa – que naturalmente vamos esquecendo ou, em outras palavras, deixamos de enxergar.

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