Entrevista: Eduardo Valente
O lugar do crítico/cineasta
Por Luiz Joaquim | 28.10.2009 (quarta-feira)
Quando ganhou o prêmio da mostra Cinefondation das mãos de Martin Scorsese, na edição de 2002 de Cannes, o cineasta crítico da revista eletrônica Cinética Eduardo Valente assegurou, de acordo com as regras do Festival de Cinema, que seu primeiro longa-metragem seria necessariamente programado em alguma mostra da seleção oficial. Isso ocorreu neste ano, com o filme “No meu lugar”, exibido na última edição do Janela Internacional de Cinema e com estreia prevista no Recife para o próximo ano. Entre o primeiro trabalho que venceu um prêmio em Cannes, o curta “Um sol alaranjado”, e a obra mais recente, é possível perceber diferenças estéticas e narrativas. De uma narrativa curta e intimista, que usa o silêncio como força dramática, para um longa que aproveita um escopo maior de personagens para mapear a violência social e sua dimensão mais particular na vida de três núcleos familiares. Em entrevista, Valente explica como foi a realização do filme e sua visão de cinema.
No caso de dois trabalhos seus, “Um sol alaranjado” e “No meu lugar”, senti diferenças de estilo, de como você se relaciona com as histórias. O primeiro é mais silencioso, aborda a intimidade da relação humana. O longa já se abre para um escopo maior de personagens e de sociedade. Como foi essa mudança na sua forma de criar?
Não sei se é porque trabalho com crítica, e tenho um interesse amplo pelos diferentes tipos de cinema, mas em cada um dos meus curtas, e agora no longa, sempre mudei muito de formato e de estética. Não acho que tenho um “projeto” de cinema, naquele sentido de “ah, eu quero com meus filmes explorar esse determinado assunto”. Pelo contrário, tenho outro interesse, de a partir de cada filme tentar fazer uma coisa nova. Tenho curiosidade por narrativas e formatos muito diferentes. Então acho que isso que você falou sobre a diferença entre os trabalhos vem a ser um desdobramento desse conceito. Mas acima de tudo, vem de uma noção pessoal de fazer cinema.
Uma ligação entre seu primeiro filme e o mais recente talvez seja na forma como você privilegia a atuação, ao estender o plano e assim dar mais oportunidade para cada ator desenvolver seu trabalho. Você pensa nesse estilo específico de narração para aprofundar o trabalho do ator?
Nos dois filmes esse estilo de filmar servia ao projeto. Acho que cada filme pede uma abordagem específica. Por mais que o tempo do plano seja mais longo, no caso de “Um sol alaranjado”, a câmera não se movia. Já em “No meu lugar”, a câmera está sempre viva em cena, o que já é uma mudança e tanto. Isso também tem a ver com o tipo de relação entre os personagens: no meu primeiro filme eram relações mais estáticas, sem diálogo, ao contrário de “No meu lugar”. Não acho que eu tenho um “projeto”, ou uma “ideia” do trabalho que tenho que fazer com o ator. Tenho esse jeito de me adaptar a cada filme.
Tanto em “Um sol alaranjado” quanto em “No meu lugar”, você deixa momentos importantes da narrativa fora do quadro. No longa isso é mais evidenciado: todos os personagens tiveram suas vidas afetadas por causa do que aconteceu naquela cena; a família que perdeu um pai, o policial que matou um inocente e o bandido que invadiu a casa. Por que a escolha desse recurso?
O “fora de quadro” sempre foi uma das grandes potências do cinema, uma possibilidade de ampliação do mundo para além do visível. Uma grande ferramenta do cinema, independente de ser usado em cenas dramáticas, como essas que você citou. Em “No meu lugar” há duas questões principais. Primeiro, ao não mostrar aquela cena, o efeito que a gente busca é de aumentar a sensação de que o que realmente importa é todo o desenvolvimento do filme. Tem uma segunda questão, que, por experiência própria, uma situação como aquela é vivida de um jeito muito particular dentro da experiência humana. É algo que acontece muito rápido: as lembranças de quem passa por uma situação como essa são sempre meio truncadas. É difícil você pegar pessoas que tenham experimentado um instante de crime e a descrição delas narrarem da mesma forma.
Era uma ideia que estava no roteiro ou vocês decidiram durante as filmagens?
Não, já estava desde a primeira versão do roteiro. É um dos pressupostos principais do filme. A cena nunca foi filmada. A própria decupagem indica uma predisposição àquilo. Por mais que no cinema a gente saiba que a imagem é construída, não deixa de ser uma verdade. Se eu filmasse essa cena, de qualquer forma que fosse, iria ficar como “de que maneira aquilo aconteceu”. A partir do momento em que você filma essa imagem, você automaticamente permite o julgamento sobre os erros e os acertos dos personagens de forma objetiva. E eu acho que essas conclusões não podem ser fáceis. Ao retirar esse fato da imagem, a gente deixa muito mais aberto para o espectador a incerteza sobre o que aconteceu ali. Fica só a ideia de que foi uma coisa violenta, radical e que leva a um final trágico.
Durante o debate depois do filme, você disse que se tirasse 30 segundos o filme iria mudar bastante. Por quê?
É o tipo de coisa que você percebe quando conhece bem o material. Isso é uma ideia que vem de Eisenstein e de todos os teóricos da montagem, que fala sobre a ligação entre imagens, e como é possível criar sentidos diferentes. Então, se você tirar uma determinada imagem, não é só que essa imagem saiu, mas também que as duas que estavam entre ela agora passam a fazer uma conexão de sentido diferente.
Você acha que o fato de ser um crítico influente vai interferir na relação entre a crítica e o filme?
A recepção da crítica ainda está começando. Mas acho que o fato de eu escrever vai influenciar sim uma série de pessoas. Como crítico e realizador, não acho que as críticas queiram, nem precisem, nem são definidoras de nada. Eu encaro com muita tranquilidade o fato de que vão haver tanto críticas negativas quanto positivas. E nenhuma delas vai ser minha baliza para me posicionar em relação ao filme ou em relação à própria crítica. O que me interessa é ver a profundidade da relação do crítico com o filme. E aí não importa tanto se vão ser positivas ou negativas. Quanto a realizadores que não são críticos, muitas vezes eles têm a dificuldade de separar a relação que o crítico estabelece com o filme e com ele pessoalmente. Para mim nunca uma crítica vai ser uma relação comigo. Pode até influenciar o fato das pessoas me conhecem, mas isso é o de menos. O que importa é que não é de mim que estão falando, e sim do meu filme. E com meu filme eu sou muito bem resolvido. É muito tranquilo para mim saber que a crítica – e isso é uma coisa que os cineastas têm muita dificuldade de ver – é uma consequência natural do filme. Faz parte do processo. É necessário para o cineasta, para o filme e para os espectadores. Não existe essa ideia boba de que “o crítico é um inimigo”, ou então como alguns cineastas perguntam “para que serve a crítica?”. Eu entendo exatamente para que serve, qual é a função. Sobre “No meu lugar”, ainda vai aumentar muito na medida em que o filme for lançado comercialmente. Mas eu aguardo com muita tranquilidade e com curiosidade, assim como eu tenho curiosidade por ouvir dos espectadores.
Você já falou que entre trabalhar como crítico e como cineasta, você prefere a crítica. Por quê?
Não chega a ser uma decisão fechada. Minha relação com o cinema começou como espectador fascinado pela experiência na sala de cinema. Acredito que é impossível, pelo menos de uma maneira regular, viver no Brasil apenas realizando seus próprios filmes. Para você ser um cineasta, tem que ter uma pré-disposição para correr atrás de trabalhos às vezes não pessoais. Acho a realização de filmes incrível, não tenho nenhum problema com isso. Só acredito que, como ofício diário, ser cineasta é muito difícil. Além de implicar num certo distanciamento dessa experiência de ir ao cinema. O set de filmagem é um ambiente muito positivo e criador, mas também muito cansativo e extenuante. Para mim isso não é tão prazeroso quanto é o ofício do crítico.
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