Pacific
Do registro pessoal à narrativa autoral
Por Luiz Joaquim | 24.10.2009 (sábado)
Logo após a abertura de “Pacific”, longa-metragem de Marcelo Pedroso exibido hoje na programação do Janela Internacional de Cinema, as regras surgem: as imagens que acabaram de ser exibidas, e as que se seguirão, não possuem o suor do autor, ao menos no sentido clássico de decupagem e criação estética. Essas imagens são, na verdade, registros que os passageiros do navio Pacific fizeram durante uma viagem a Fernando de Noronha. Nenhum tipo de contato foi estabelecido antes do passeio – só depois da viagem, quando a equipe por trás do trabalho percebeu a grande quantidade de pessoas com câmeras, é que houve conversa com os viajantes, pedindo permissão para criar um filme a partir desse material registrado.
Essa escolha abre margem para discutir a pluralidade pertinente à ontologia da imagem. Se os registros de viagem possuem um sentido específico quando são feitos – e depois observados – por uma família, ao retirar esse material dessa zona de conforto e colocá-lo numa sala de cinema, temos uma nova significação para essas imagens. Elas passam do sentido de registro factual ou afetivo de determinados instantes e percorrem novos caminhos de leitura, voltados à interpretação artística, que vão da memória manipulada, do autor (não?) autônomo e, talvez ainda mais curioso, do próprio papel da arte cinematográfica em refletir sobre as dimensões de uma imagem.
A narrativa do filme de Pedroso possui uma limitação imposta pelas regras anunciadas no começo: não há possibilidade de inserir imagens que, por acaso, ele como autor queira; a montagem do filme está restrita ao material físico que ele juntou com os passageiros. O que se tem a partir daí é uma curiosa tentativa de tornar essa ideia provocativa de registro etnográfico em tom de diário pessoal em algo tradicional, com início (começo da viagem), meio (percurso) e fim (chegada a Fernando de Noronha) bem desenhados. O processo é o que chama a atenção: o percurso é quase um mapa sentimental dos passageiros, pontuado pelos registros pessoais que eles fazem durante as festas ou no cotidiano de banalidade absurda que estabelecem na intimidade dos seus quartos.
Enquanto o plano, a imagem primeira, é a de um viajante interagindo com a câmera, as pessoas e o navio, o contra-plano é outro passageiro, fazendo a mesma coisa. Entre as imagens, está o autor, que se configura no limite tênue da conexão entre esses planos e contra-planos, na observação de um dinâmica social particular, nas transformações que o choque entre imagens (não captadas por ele) é capaz de provocar, e não no processo de criação em si. É um filme que certamente encontra ecos no curta-metragem “Jarro de Peixes”, que ganhou o prêmio do júri do Janela Crítica, na edição passada do Janela. O assunto não se encerrou ali e o debate da mistura entre arte e registro ainda prossegue (e esta segunda edição do Janela nos lembra isso com belos filmes como “Pacific”).
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