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Críticas

A Hora da Estrela

A hora da delicadeza

Por Luiz Joaquim | 09.12.2009 (quarta-feira)

É provável que não exista nenhum outro personagem levado às telas do cinema brasileiro tão ingênuo e indefeso quanto a Macabéa, criada por Marcélia Cartaxo sob a direção de Suzana Amaral no filme “A Hora da Estrela” (1985). Adaptado da obra homônima de Clarice Lispector, este irrefutável clássico de nosso cinema exibe amanhã (quinta-feira, 10-dez) em sessão especialíssima às 20h20 no Cinema da Fundação, dentro da mostra “Expectativa” com a presença da protagonista Cartaxo. É uma cópia nova, restaurada pelo Centro de Pesquisadores do Cinema Brasileiro, sob a coordenação de Myrna e Carlos Brandão, com patrocínio da Petrobrás e apoio do Ministério da Cultura. Depois de exibições no Rio, São Paulo, Brasília e João Pessoa, a cópia tem sua quinta projeção aqui no Recife.

Em 1985, à época com 53 anos, a cineasta (que há um mês, aos 76, lançou nos cinemas seu novo “Hotel Atlântico”) Suzana Amaral estava se arriscando em seu primeiro longa-metragem de ficção. E logo numa adaptação de Lispector. Era um risco duplo, considerando-se que a protagonista era uma “nortista” e não uma baiana, como declara a própria Macabéa, solitária e fragilizada numa metrópole sudestina.

O tema é cansado, e já deu ao cinema alguns clássicos, entre eles “O Homem que Virou Suco”, de João Batista de Andrade (1981), rendendo o Candango de melhor ator para José Dumont no Festival de Brasília. À propósito de Festivais, “A Hora da Estrela” também é pródigo. No de Brasília é até hoje o campeão em volume de troféus, foram 12. Em Berlim, Marcélia arrebatou o Urso de Prata, concedido a melhor atriz em competição. Foi uma trilha que Cartaxo abriu para Ana Beatriz Nogueira, também vencedora ali no ano seguinte por “Vera”, e em 1998 por Fernanda Montenegro com “Central do Brasil”.

Mas, acima do drama da condição de uma estrangeira em seu próprio País, a composição de Macabéa – feita por Lispector e indissociavelmente personalizada por Cartaxo – traz consigo uma potente carga de feminilidade vinculada à fragilidade inerente a qualquer ser humano. E um tipo de ser humano indefeso em sua condição de ignorante. Macabéia, que sofre desde a apresentação de seu nome (“Maca… o que?”, sempre lhe perguntam), é, como diz a cartomante Carlota (Fernanda Montenegro), uma flor, “fragilzinha demais para a brutalidade de um homem”.

Tímida, em quem ninguém vê beleza, Macabéa gosta mesmo é das coisas simples da vida, como cachorro quente com Coca-cola, ou ainda, queijo com goiabada. Escuta a rádio-relógio como fonte de cultura. E “cultura” é um conceito que nem entende bem, mas para ela é fonte de prazer, e não de status, ou seja, Macabéa é mais autêntica e sensível que muita gente letrada. Outra prova disso esta nas suas lágrimas ao ouvir uma ópera pelo rádio. A sensibilidade de Macabéa está alguns degraus acima do da maioria de nós, que é mediana e habitualmente filtrada pela vida em sociedade.

O contraste dessa sua sensibilidade em confronto com sua dificuldade de se relacionar com o mundo é a grande pancada que o filme dá em nossa cabeça. É como ver um bichinho que precisa usar uma roupa para trabalhar num circo, sendo que essa roupa a impede de respirar. Não é à toa que Macabéa está sempre pedindo aspirina para Glória (Tamara Taxman), sua colega de escritório. Maca sente uma dor constante sem saber decifrá-la. Talvez seja a dor de quem precisa vestir a obrigatória máscara social, mas que nela nunca encaixa bem.

Há uma combinação de talentos aqui em “A Hora da Estrela” rara em nosso cinema e que, ao acontecer, gera obras-primas absolutas. Sob o comando de Amaral, temos José Dumont como Olímpico de Jesus. Ele é um escroque, que namorado Maca, e esta aqui mais para marcar a fragilidade dela, a partir da sua masculinidade rústica. É tão ignorante quanto ela, mas nunca atento para as coisas pequenas da vida, como é Maca. Daí sua propensão ao ridículo ser maior que a de Macabéa. Em sua “esperteza”, é ele quem fica perdido ao final da história.

A beleza da união dessa dupla está também na legitimidade que eles emprestam a seus nordestinos. Dumont já tinha prestígio pelo talento à época de “A Hora…”, mas Marcélia viu sua vida dar um giro radical ao estrelato. A paraibana de Cajazeiras, naquele momento com 22 anos, esforçava-se com um grupo teatral que certo dia teve a oportunidade de se apresentar em São Paulo. Num dos espetáculos, Suzana Amaral estava na platéia. Deu-se início à parceria.

Desde então, Marcélia teve passagens pela TV e brilhou com outros belíssimos personagens femininos no cinema, como em “Madame Satã” (2002), “O Céu de Suely” (2006), “Batismo de Sangue” (2007) ou “Baixio das Bestas” (2007), além de já ter dirigido seu próprio curta-metragem “Tempo de Ira”, em 2003. Apesar de tudo isso, Marcélia nunca conseguiu se desvencilhar de sua Macabéa. Coisa fácil de entender, visto o gigantismo dessa heroína às avesas e do monstro de atuação em que Marcélia se transforma na sua pele.

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