Quem elege os eleitos?
Como são escolhidos os filmes que exibem nos cinemas do Recife?
Por Luiz Joaquim | 20.01.2010 (quarta-feira)
Curadoria de arte é o tipo de expressão que carrega nos ombros um peso desnecessário de autoridade. Sugere um diálogo vertical, feito de cima para baixo, mas na verdade é o tipo de debate tende a (re)aproximar arte e público. Essa discussão sobre a legitimidade do curador como intermediário entre esses dois pontos parece especialmente necessária depois de uma declaração de Luciana Azevedo, presidente da Fundarpe, pouco depois da reabertura do Cinema São Luiz.
Sobre a nova gestão do cinema, Luciana disse que a escolha dos filmes será “uma construção em conjunto”. “Acabou o mundo do especialista, este é um modelo antigo”, ressaltou. Esse posicionamento foi ratificado num comunicado oficial, em que a Fundarpe anunciou que Geraldo Pinho, atual gestor do Museu da Imagem e do Som de Pernambuco (Mispe), será o “consultor técnico”, responsável pela programação junto com outras 12 pessoas, que formam o “conselho consultivo”. Treze pessoas vão decidir o filme que entra em cartaz, numa única sala de cinema.
É o tipo de decisão que implica refletir a respeito do papel da curadoria, sobre como é possível criar um determinado perfil para uma sala de cinema a partir de certas escolhas conceituais. Essa é uma discussão que parece fazer ainda mais sentido não só pela reabertura de um cinema tão cheio de histórias como o São Luiz, mas também porque esta é uma cidade em que 43 dos 48 cinemas têm o curioso hábito de arremessar filmes para consumo massivo sem se preocupar se algum deles bate na cabeça de algum espectador desavisado.
O Cinema da Fundação, representante autêntico da resistência cinematográfica, serve como parâmetro para discutir sobre curadoria. Chamar o Cinema da Fundação de “cinema de arte” é reforçar uma expressão traiçoeira. Assim como se referir a salas dos shoppings a “cinemas comerciais” também significa reduzir algo complexo a um verbete. “Essas são definições velhas e limitadas. São expressões de mercado. ‘Filmes de arte’ são filmes que os distribuidores acham que não vão dar lucro”, diz Kleber Mendonça Filho, responsável pela curadoria desde a abertura do cinema, em 1998.
Entre suas preocupações como curador, Kleber aponta a necessidade de “mostrar um tipo de cinema que não é muito visto”. “Uma das missões do Cinema da Fundação é valorizar obras que apreciamos e que queremos que sejam descobertas pelo publico”.
Ideia reforçada pelo sentido de curadoria de Luiz: “Quando vejo determinado filme num festival, desconfio que ele possa dar certo na Fundação. Aí entra meu gosto pessoal; mas um gosto coordenado por um conceito bem definido”, aponta Luiz, que explica esse “conceito bem definido” para o Cinema da Fundação como sendo um “espaço para filmes que merecem algum tipo de reflexão”.
Enquanto cinemas alternativos buscam desdobrar um perfil a partir da programação e das mostras especiais, Kleber acredita que o Multiplex investe no oposto. “As salas dos shoppings não têm personalidade, são como caixas de sapato”, diz o crítico. “Você não sabe onde viu o filme, não sabe se foi na sala 4, 12 ou 9. A própria ideia de lá é se livrar da personalidade”. E personalidade é justamente o que legitima o trabalhado de curadoria: associar um determinado conceito à sala de cinema. “A sala precisa ter uma personalidade, assim como uma pessoa. E isso só chega ao público depois de certo tempo”, define Kleber.
Mas o debate não é no sentido de polarizar uma briga antiga entre arte x comércio, e sim entender que essas escolhas existem, e que uma pessoa com cargo legitimado pela sua trajetória social as fez a partir de certos critérios. E que decidir por um tipo de curadoria implica na caracterização do cinema. “Não vejo a relação entre a Fundação e os multiplex como um contraponto, até pela forma como público associa perfil da fundação, de um cinema que tenta suprir um circuito que é pobre, que possui dezenas de salas comerciais, que passam o mesmo tipo de cinema. E o trabalho de curador é essencial num circuito pobre”, aponta o crítico.
Fazer escolhas para o cinema implica ter bagagem para diferenciar filmes (e perceber se esse possível candidato faria diálogo forte com a sala em questão) e conhecer atalhos para negociações com distribuidores. E como são conversas apertadas pelo tempo, dinheiro e interurbanos, adicionar as vontades particulares de mais de 10 pessoas no debate sugere menos personalidade e mais facadas políticas.
“O São Luiz tem 900 lugares, como mostrar ao ‘povão’ que existem coisas boas? Como não resvalar em ‘Alvin’, cuja procura sugere que é isso que supostamente o povão gosta? Vai se trabalhar no supostamente ou mostrar outra possibilidade de cinema? Refletir sobre essas questões vai ser o grande desafio de quem assumir um cinema como o São Luiz. É importante ter alguém que norteie essas escolhas”, destaca Kleber.
Talvez o ponto com maior índice de concordância seja a necessidade de viajar para conhecer novos filmes. “Se você não viajar, você vai estar programando cegamente. Até porque quando o curador conhece bem o filme, a briga por ele se torna muito mais viva. E trazê-lo para a sala não é só estalar os dedos: tem que fazer o trabalho corpo a corpo com as distribuidoras, telefonemas para o Rio, São Paulo, Paris, Lisboa, Rio Grande do Sul. Vamos atrás, batemos na porta. Daí o cara olha e vê que você quer mesmo esse filme. É difícil imaginar fazer isso tudo por algo que você só ouviu falar”.
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A ideologia “multiplex” de programação
É fácil encontrar brechas para criticar os cinemas dos shoppings. Partindo do erro que é generalizar, podemos dizer que os filmes que são exibidos por lá dispensam a vontade de sublimar em troca do desejo de arrecadar dinheiro. Isso é difícil de aceitar porque a arte supostamente deveria estar bem longe de questões financeiras. Mas é a lógica dos números que impera nos multiplex: filme bom é filme que dá público.
Pedro Pinheiro, programador dos cinemas do Grupo Severiano Ribeiro (à frente das salas do Shopping Recife, Tacaruna, Boa Vista e Plaza), explica o reinado dos números com a dialética que é peculiar ao mercado: “A gente é aberto a qualquer filme do mercado, desde que tenha potencial para público”.
Esse conceito de “potencial de mercado” se reflete na programação dos cinemas coordenados por Pedro. As salas são extensões da engrenagem da indústria cultural, motivadas pela quantidade bruta. Lógica inversa do sentido de curadoria proposto por Kleber e Luiz: vale mais o concreto, o que pode ser reduzido a um número rabiscado num papel. É uma outra dinâmica: “Como exibidora, nossa empresa paga as contas com a renda da bilheteria. É essa renda que paga o filme, o funcionário, o contrato com os shoppings. Se o filme não pagar por ele mesmo, a distribuidora não negocia conosco, até pagarmos o que devemos”, diz Pedro.
Para ilustrar como o calendário anual de estreias é rígido, Pedro lembra uma noite do Cine PE 2009. Barretão botou a mão no ombro de Pedro, puxou o programador para o lado, e avisou: “Então, vamos estrear ‘Lula’ no dia primeiro de janeiro do ano que vem, ok?”. “Luiz Carlos Barreto já tinha fixado a data de estreia. É óbvio que podia acontecer alguma mudança. Mas nesse caso não ocorreu. Esse exemplo é para você ter ideia de que já existe um calendário previamente estruturado, que é estabelecido pelas distribuidoras, com todas as grandes estréias do ano”, explica.
Um filme-evento como “Avatar” (e aí a gente pode incluir outras pedradas na cabeça, como “Lua nova” ou “2012”) pode desestruturar a planilha de Excel de um programador. Ou mesmo das distribuidoras. Depois de muito boca a boca, “Coco Chanel” sofreu e chega nesta semana coberto de poeira. “Não tinha cópia disponível antes. E janeiro é período de férias e época de ‘filmes de Oscar’, as salas estão ocupadas. Às vezes até tenho o filme, mas não posso lançar, porque as salas estão exibindo obras que estão bem freqüentadas, como é o caso de “Avatar”. E como é um ‘Coco’ é um ‘filme pequeno’ (Pedro se apressa em explicar: ‘pequeno em termos comerciais!’), pode entrar depois”, disparou.
Por todos esses detalhes financeiros, quando os cinemas dos shoppings se disponibilizam a exibir “arte”, a crítica parece pesar mais. “Não consigo entender porque Kleber e Luiz não percebem a boa iniciativa que é a sessão de arte. Trago um filme como ‘Garapa’, que teve bilheteria péssima, mas não é uma atitude reconhecida” (O repórter diz a Pedro que, na sessão em que foi assistir ao filme de Padilha, devia ter umas 10 pessoas). “Tá vendo? Eu podia ter colocado outro filme na sala, que talvez levasse umas 100 pessoas. Mas queria trazer um tipo de filme diferente do que seria um ‘comercial'”explica Pedro.
A Sessão de Arte talvez seja o estranho no ninho, dentro de um cinema tão voltado para o lucro. Possui horários problemáticos (sexta às 21h, sábado às 11h, domingo ao meio dia, segunda a quinta às 19h), que sofrem alterações sem aviso prévio (nesta semana, ao invés de 19h, as sessões são às 21h). “Acho que uma sala específica para a Sessão de Arte não daria certo. O Box já tentou e fechou 2 ou 3 meses depois. Acredito que, no final das contas, a procura seria a mesma: se o filme tem apenas uma sessão por dia, e vão 100 pessoas, essas mesmas 100 pessoas iriam se dividir durante a semana, se o filme tivesse uma sala específica para ele”, analisa Pedro, que acredita estar dando “sua contribuição” com essas sessões. “Digo isso como funcionário e como espectador.”
Sobre a existência de cinemas com propostas conceituais diferentes, Pedro acredita que não há problema. “Cada cinema tem seu público. A gente tem perfil comercial, não tem como negar isso. Exibimos filmes de mercado, grandes produções americanas, mas também filmes alternativos com poder comercial”, ressalta. (HV)
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Entre a “arte” e o mercado
Embora “cinema de arte” e “cinema comercial” sejam conceitos que pedem por aspas, parêntesis ou notas de rodapé para esboçar algum tipo de explicação extra (ou então pedido de desculpas), são expressões que ainda fazem parte do vocabulário de quem atua programando cinemas. Parece facilitar no trato com o distribuidor e na relação com o público; serve para deixar o perfil da tal sala sem maiores ambiguidades.
Ernesto Barros, que atua na curadoria dos cinemas Apolo e Parque, encontra nessas duas ferramentas sua mecânica pessoal para gerenciar as duas salas. “Todo filme é comercial, no sentido de ser um produto de venda”, diz Ernesto. “Mas há filmes que são mais complexos do que outros. E é essa complexidade que dita onde ele vai se encaixar na programação”, ressalta o curador. “Mas isso não significa que ele seja ruim”, aponta.
Curador do Apolo e do Parque desde 2008, Ernesto diz que procurou não mudar os perfis que os dois cinema já tinham estabelecido, construídos em gestões anteriores. “O Parque tem tradição de exibir filmes nacionais e obras do circuito comercial, mais acessíveis ao público. Filmes que acabaram de sair do Multiplex”.
Já o Apolo seria a contraparte artística. O passado recente mostra variedade, de blockbuster alienígena como “Watchmen”, a documentários obscuros, como “FilmeFobia” (“O filme de Kiko Goifman deu mais ou menos 30 pessoas. Sabia que seria pouca gente, mas era um filme que eu precisava trazer, ainda não tinha estreado em nenhum outro cinema daqui”, defende o curador).
Talvez a maior dificuldade do Apolo seja sua combinação promíscua entre teatro, cinema e ponto para debates (como na recente Feira Música Brasil). Segundo Ernesto, a localização também complica. “Pessoas reclamam da falta de policiamento no entorno”, pontua.
O caso do Cinema Rosa e Silva amalgama o que ocorre entre o Apolo e o Parque: é um cinema que experimenta programação misturada entre filmes “de arte” e “comerciais”. Cercada de blockbusters por todos os lados, a Sala 3 do Rosa e Silva opera no sentido de resistir e trazer filmes que Carol Ferreira, que encabeça a seleção, descobre quando vai a festivais. “São obras que focam outras cinematografias, trabalhos que possuem outras propostas de cinema”, explica Carol, que reluta em se afirmar como “curadora”.
“Acho que a palavra ‘curadoria’ pressupõe uma necessidade precisa: de um universo enorme, o curador escolhe um determinado número de filmes. A programação diária envolve pequenos problemas, que fogem ao controle do curador, como o fato de ficar refém da disponibilidade da cópia”, opina Carol.
Carol acredita que é essa dificuldade diária que pede por um olhar especialista na hora de buscar novos filmes para programação do cinema. Para responder a essas dificuldades (prazo, poucas cópias, negociação direta com um contato dentro da distribuidora) o programador teria que saber atalhos para contornar os problemas.
Carol define o programador como alguém que faz “um tipo de programação pensada, que leva em conta conhecimento sobre o filme, sobre o público, sobre o calendário”. “A pessoa vem da área de cinema, que estuda teoria ou história, que exerce a critica, é alguém que circula em festivais, que procura conhecer não por obrigação, mas porque curte cinema”, explica. (HV)
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