A Doce Vida
Doce vida amarga
Por Luiz Joaquim | 03.09.2010 (sexta-feira)
Embora o começo da trajetória de Federico Fellini no cinema sugerisse um tipo de cineasta engajado, interessado em localizar os problemas sociais da Itália depois da Segunda Guerra Mundial, continuando o projeto conceitual do movimento neo-realista, o cineasta outorgou para si o direito de fazer um tipo de cinema baseado na subjetividade e na intervenção pessoal como fatores intercambiáveis.
“A doce vida” (Itália, 1960) foi filmado num contexto particular do cinema europeu, em que o conflito existencial era analisado por um tipo de ótica autoral sem restrições. A melancolia silenciosa de Antonioni, em filmes como a trilogia “A aventura”, “A noite”, “O eclipse”, nos anos 1960, ou a nostalgia imiscuída a um tipo raro de humor de Jacques Tati, em “Meu tio” (1958), são variações pessoais sobre o mesmo tema abordado na narrativa de Fellini: o buraco existencial na vida burguesa, em que religião e vida em sociedade não fornecem conforto.
O filme de Fellini se afasta desses outros exemplares por investir numa carga emocional evidente, e pela capacidade de poder ser visto como uma narrativa alegórica, construída por esquetes fragmentados, que em geral começam à noite, com uma mistura entre esperança e fé, e terminam na desilusão e na letargia de um novo dia. Entre os episódios, a relação entre Mastroianni e a atriz sueca Anita Ekberg permanece como um totem representativo da capacidade de imanência da imagem cinematográfica na memória afetiva. O banho noturno gelado no ponto turístico Fontana di Trevi ilustra essa rara união entre cinema narrativo e mergulho subjetivo de um cineasta em busca de explorar conceitos autorais do cinema moderno.
Apesar dos 50 anos que esse monumento filmado completa em 2010, é curioso perceber como quase tudo no filme de Fellini permanece incrivelmente atual. Marcello trabalha como colunista social de um jornal, frequenta a fineza rica da alta classe italiana. Entre boates de grande porte e mulheres de preço elevado, entre essa vida de glamour acelerado e o vazio afetivo, Marcello inicia um processo autofágico de reflexão. Ele pretende sair do cotidiano jornalístico e iniciar trajetória na escrita de romances. No fim, ninguém parece se entender, e o título fornece metáfora melancólica para uma existência sem respostas.
A Itália é filmada em preto e branco e representa um espaço urbano boêmio e noturno, carregado de bares, fumaça e personagens ambíguos. A relação entre Marcello e sua mulher, a morte sem sentido de um amigo, a ausência do afeto paterno e a incomunicabilidade são temas transmitidos num estilo carregado de simbologia. É um tipo de nostalgia cômica, um humor melancólico que parece ter ficado impregnado nos trabalhos sequentes de Fellini, diretor que é associado a uma espécie de cinema de alta voltagem humanista.
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