Inverno da Alma
Luta por sobrevivência em um território hostil
Por Luiz Joaquim | 19.05.2011 (quinta-feira)
Há duas imagens no começo de “Inverno da Alma” (Winter’s Bone, EUA, 2010) que, vistas em retrospectiva, parecem de alguma forma diagnosticar um estado de espírito talvez distorcido de um território essencialmente norte-americano. O filme é exemplar do cinema independente dos Estados Unidos, que vem se especializando nos últimos anos como centro de observação de costumes dos EUA, oscilando entre panoramas críticos sobre a instituição familiar e pequenos relatos de dramas íntimos.
Nessas imagens, vemos a protagonista, Ree (Jennifer Lawrence), 17 anos, andando sozinha pelo corredor de uma escola. Através da janela da porta ela vê meninas mais ou menos da mesma idade que ela segurando bonecos simulando bebês, talvez treinando para a maternidade. Depois ela olha para outro ambiente e enxerga um grupo de jovens empunhando rifles e em marcha, num tipo de exercício militar.
Depois do filme essas duas imagens voltam para assombrar como testamentos pessimistas sobre um futuro aparentemente inevitável de uma geração. É um resumo com precisão aterradora das possíveis ocupações futuras de um jovem nessa região, as Montanhas de Orzak, em que uma pessoa de 17 anos parece, talvez pela dureza do cotidiano, muito mais velha do que realmente é, e no futuro pode escolher livremente entre ser mãe (as mulheres) e militar ou criminoso (os homens).
O filme localiza esse amadurecimento precoce como um tipo de mecanismo de defesa para sobreviver num ambiente claramente inóspito. Não apenas por causa do clima sempre gelado e com previsão constante de neve, mas essencialmente porque ninguém parece olhar genuinamente com carinho ou humanidade para o outro.
O filme é uma pequena fábula terrível sobre uma menina em busca do pai, uma história situada num território hostil, uma cidade fria e pouco habitada no centro dos EUA. Ree tem dois irmãos mais novos e uma mãe catatônica. Um policial avisa: se o pai dela não aparecer em alguns dias para uma audiência sobre sua liberdade condicional, eles perdem a casa. Ree então parte numa jornada muitas vezes desagradável em busca do pai, o que levanta suspeita da vizinhança, que possivelmente tem algo a perder se esse mistério da ausência for esclarecido.
Há uma quantidade incrível de ambiguidade nas relações entre esses personagens. Tudo é muito discreto, e justamente por isso o clima de tensão chega intacto ao espectador. Há poucas palavras e menos explicações ainda nesse filme pesado, e o fato de se basear num livro parece apenas reforçar o talento da diretora Debra Granik para a composição de uma mise-en-scéne hábil. Não é um silêncio programado numa oficina de roteiro, é a representação de uma rotina de poucas palavras, que enfatiza a sensação de estarmos numa comunidade regida por regras de conduta que excluem a comunicação, em sotaque carregado, como requisito básico.
Nesse ambiente pouco favorável para a bondade, Ree percebe que para encontrar seu pai precisa fazer perguntas para as pessoas com quem ele trabalhou no passado, um grupo que cria e comercializa drogas. “Falar com pessoas gera testemunhas”, diz uma personagem, como forma de insinuar o tipo de desamparo e desconforto com a palavra nessa região.
Algo que passa meio que despercebido, talvez por ser discretamente eficiente, é a reconstrução realista via imagem desse lugar. As primeiras cenas parecem confiscadas de algum filme caseiro, como se fossem registros de pessoas autênticas em sua própria rotina diária. Tudo é filmado com leve inspiração no cinema documental, com câmera na mão, cabelos naturalmente desgrenhados e ambientes cuidadosamente desestruturados.
Talvez a imagem símbolo desse filme seja a de um bar vagabundo, povoado por homens barbudos e mulheres sem qualquer toque de feminilidade, todos envolvidos num silêncio rude, olhando para o lado com incrível desconfiança do outro, e se necessário prestes a cometer atos de violência para continuar vivos.
Serviço (na cidade do Recife)
Hoje (18/05) 20h30 no Boa Vista
Domingo (22/05) 12h no Plaza
Segunda (23/05) 19h30 no Tacaruna
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