Uma história em busca de um filme
Senhora escreveu (bem) as memórias para aliviar as angústias
Por Luiz Joaquim | 02.01.2012 (segunda-feira)
Há cerca de dois meses, uma assinante da Folha de Pernambuco telefonou para a redação do jornal nos consultando se algum cineasta se interessaria em fazer um filme a partir da história de sua vida. A pergunta de Verônica Guerra Barbosa, 74 anos, intrigava e imediatamente suscitava outra: mas o que há de tão interessante na vida dessa senhora que valha ser levada ao cinema?
Há muito. E elas foram ordenadas num “rascunho de um livro” feito pela própria Verônica ao longo de sete meses, entre dezembro de 2010 e agosto de 2011, período que sua filha caçula, Katarina, 32, ficou internada em tratamento por uma leucemia violenta. A doença a colocou em coma por duas vezes, e numa delas obrigou os médicos a tirar-lhe o bebê no quinto mês de gestação.
Dona Verônica recorda que um dos momentos mais difíceis foi quando os médicos disseram que sua filha tinha apenas algumas horas de vida. “Fui até a Igreja de Nossa Senhora das Graças chorando muito e solicitei ao padre para, na hora da elevação da hóstia, ele pedir por minha filha. Daí levei água benta para o hospital e a benzi na UTI desejando que Deus me levasse no lugar dela. Voltei para casa e recebi um telefonema. Era o marido de Katarina dizendo que, para o espanto do médico, ela tinha saído do coma e que se continuasse assim, iria tirá-la da Unidade Intensiva em poucos dias”.
Durante o extenuante período, toda a rotina da família mudou. “Passamos todo esse tempo no hospital com muita angustia. Certo dia, resolvi que ia escrever o que estávamos vivendo para me sentir mais aliviada. Daí, comprei um caderno e depois uma máquina de datilografar e fui descrevendo tudo”, explica.
O resultado está em 37 páginas narrando situações que vão bem além do martírio de Katarina. Na verdade, Dona Verônica não fez apenas uma descrição dos acontecimentos. Usando a escrita como válvula de escape, a autora também transcrever sensações de situações irreais que vinham a sua mente, exausta nas noites de insônia. E se saiu bem.
Quando parte para situações concretas, não faltam queixas políticas de toda ordem, mas também lembranças felizes como as brincadeiras do tempo de menina, quando viveu até os 10 anos no Engenho Souza, no município de Água Preta (PE) – “ah, foi o melhor tempo da minha vida”.
Estão lá também as aventuras da mocidade quando solteira, e da lembrança triste de um rapaz por quem se interessou e soube, lendo o jornal, de sua morte num acidente de avião. Já da vida de casada – formando já quase 50 anos e tendo gerado mais dois filhos homens e dois netos – os momentos marcantes são o do início da união. Época em que morou numa vila sem energia elétrica e até aprendeu a atirar para assustar um caseiro mal intencionado.
Mas há na história de Dona Verônica, principalmente, uma forte carga de reflexão sobre a vida e envelhecer. Esta jovem senhora, que diz não sentir a idade, ora se diverte com suas limitações (“certa vez meu marido me pediu uma papa e voltei da cozinha com uma faca”), ora se vê perplexa com elas.
No início do livro, por exemplo, ela começa: “Estou no ônibus e veio à mente escrever algo. 74 anos feitos, com pouca audição e sem muita comunicação. É muito difícil falar com alguém. Estou encolhendo. Sinto falta de falar. Como, em um mundo tão adiantado, uma pessoa se isola?”.
Apesar de uma falta de estrutura entre as tantas histórias no livro de Dona Verônica (que ainda resgata a trajetória de seus pais e a do avô), é fácil identificar uma narrativa envolvente e competente em seus rascunhos. A fluidez narrativa vem do interesse que ela cultiva por livros biográficos de mulheres marcantes, como é o seu favorito “O Diário de Anne Frank”.
Sem ter certeza se seu “rascunho de livro” rende um filme, Dona Verônica nos pergunta se podia ao menos virar um curta-metragem. Respondo que talvez vire vários, ou nenhum, mas o importante é que o registro já está feito. Bem feito. E ela, sem saber, é a estrela da história. Sendo Katarina, hoje saudável, uma de suas mariores fãs.
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