Minha Felicidade
Abuso de poder à moda russa
Por Luiz Joaquim | 11.05.2012 (sexta-feira)
São várias as facetas dramáticas e cinematográficas em “Minha Felicidade” (Schastye Moe, Rus., 2010), de Sergei Loznitsa, que entra em cartaz hoje no Cinema da Fundação Joaquim Nabuco. Concorrente a Palma de Ouro em Cannes há dois anos, “Minha Felicidade” chamou a atenção da imprensa especializada da época por vários (bons) motivos. Há nele uma secura ao contar uma história em espiral sobre a violência pelo abuso de poder em mais de uma geração na região da ex-União Soviética, e uma competência cada vez mais rara em saber aproveitar a beleza e real serventia de uma fotografia em CinemaScope (imagem na proporção 2,34: 1).
Sobre este último aspecto, Loznitsa – que esta semana está de volta a Cannes, onde concorre novamente a Palma de Ouro com seu novo filme “V Tumane” – deixa claro sua competência nos minutos iniciais de “Minha Felicidade”. É só atentar para o jovem caminhoneiro (Boris Kamorzin) quando é parado por um posto policial em uma estrada. Com a câmera na boléia, posicionada por trás do caminhoneiro, o campo de visão da tela é dividida em duas pela cabeça do motorista. De um lado, Loznitsa nos chama a atenção para a irritação de um policial intimidando o motorista, do outro, há um outro policial, também exagerando nas exigências contra uma mulher. É um efeito magistral pela qual a importância da ação mais importante é eleita pelo espectador. Um efeito cujo único efeito, no final das contas, é a inteligência cinematográfica do diretor.
Loznitsa, cuja formação original é pelo documentário, também enxerta doses de registro do real neste seu debut em um filme de ficção. Acontece quando o caminhoneiro, dando carona a uma prostituta, e para fugir de um engarrafamento, chega a uma feira popular. Na feira, a câmera de Loznitsa esquece o protagonista e se deixa levar pelos diversos rostos dos ambulantes e vendedores, num fluxo pelo qual o mais importante são as expressões destas pessoas comuns dos quais alguns, inclusive, fitam a câmera diretamente.
Do ponto de vista narrativo, o realizador é também maestral. Consegue fazer uma síntese da fragilidade vivida pelo seu povo, seja no pós-guerra, em anos mais recentes ou em dias atuais. Construída em elipses sutis, sabemos, por exemplo, como um homem foi afastado de sua noiva por oficiais stalinistas, ou como os soldados usufruem da hospitalidade de um velho com seu filho pequeno, para depois assassiná-lo a sangue frio.
Um pouco mais a frente, talvez nos anos 1980 ou 1990, temos o caminheiro também covardemente atacado por ladrões de carga. E em tempos atuais, temos um velho catatônico – que talvez possa ser o mesmo menino que presenciou a morte do pai e também, mais tarde, o caminhoneiro violentado – cujo destino depende da bondade de estranhos. Bondade bastante escassa é o que Loznitsa quer dizer aqui.
Ao final, tendo o mesmo posto rodoviário novamente como ponto de tensão, o diretor coloca o velho catatônico mais uma vez sendo vitimizado pelo abuso do poder dos policiais. Só que desta vez, em seu transe, ele reage. Soa quase como um grito de desabafo dado por Loznitsa sobre o quão desprezo foi o seu povo ao longo dos últimos 60 anos, renovando-se apenas os seus algozes.
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