o último romântico do cinema pernambucano
Genivaldo di Pace: A casa é sua
Por Luiz Joaquim | 12.06.2013 (quarta-feira)
Se hoje o Fundo Pernambucano de Incentivo à Cultura (Funcultura) do governo do Estado é celebrado como a “mãe” do cinema pernambucano contemporâneo, muitos realizadores vão concordar que um discreto senhor, hoje com 76 anos, seria o pai da tão celebrada produção local. Como o meio cinematográfico, por nascer de um processo largamente coletivo, é profícuo em gerar injustiças e esquecimentos, não são todos que ligam imediatamente o nome de Genivaldo di Pace e da sua produtora, a Center, ao fenômeno do audiovisual que vive o Estado atualmente.
Se hoje nomes como o de Cláudio Assis, Paulo Caldas, Lírio Ferreira, Kleber Mendonça Filho e Camilo Cavalcante, além dos da geração anterior, como o de Fernando Spencer, são conhecidos no Brasil e fora dele, talvez a realidade não fosse assim se estes não tivessem cruzado no início da carreira com Genivaldo. A história e generosidade do produtor rende um livro (ou mais de um) e também um filme. Na verdade, parte desse esquecimento será sanado por um trabalho em andamento conduzido pela diretora Adelina Pontual (do doc. “Rio Doce, CDU”). Em “O Homem por Trás da Cena”, pensado para a TV, a cineasta irá contar um pouco dos 44 anos de história da Center e daquele que a tornou um refúgio para quem sonhava fazer cinema em Pernambuco nos anos 1970 e 1980.
“Nós não tínhamos para onde correr no Recife se quiséssemos fazer cinema. Tínhamos de ir para a Center. Já na época da faculdade a gente frequentava a produtora. Foi lá que viabilizamos vários primeiros filmes de nossa turma”, diz Adelina. Por “nossa turma” entenda-se Caldas (“Frustração: Isto é Um Super-8”, 1981), Assis (“Padre Henrique: Um Crime Político”, 1989), Ferreira (“O Crime da Imagem”, 1992). A diretora lembra que o primeiro filme da Parabólica Brasil, “Samydarsh: os Artistas de Rua” (1993) – co-dirigido com Assis e Marcelo Gomes -, nasceu pelo apoio da Center.
A frente da Rec Produtores, que produz os filmes de Gomes, João Vieira Jr., lembra do período formador em que trabalhou como diretor de produção da Center entre 1991 e 1996. “Aquele era um momento em que a publicidade no Estado ganhava ares de profissionalização mais especializada. Dali eu tomei pra mim ideias de gestão, compromisso com o orçamento e o resultado que aplico até hoje na Rec. Também ali surgiram e foram solidificadas amizades, gerando frutos, como as com Chico Ribeiro, Adelina, Assis e Kleber Mendonça Filho”, recorda João.
O produtor da Rec destaca que a postura de Genivaldo era mesmo a de um mecenas da cultura pernambucana. “Ele não emprestava apenas câmeras, ilha de edição, técnicos, carros, etc, mas também se colocava como interlocutor entre projetos sem dinheiro e possíveis apoiadores, como secretarias do governo ou outras agências publicitárias”. Paula Caldas corrobora lembrando o quanto era incrível que num mercado tão competitivo como o publicitário o produtor da Center fosse tão generoso. “Acho que era o Amin Steppler que chamava Genivaldo de o último romântico do cinema pernambucano”, recorda Caldas. A nobreza dessa camaradagem de Genivaldo tinha até um apelido entre os profissionais da produtora. “Eles chamavam de Sangue Azul”, conta sorrindo João Jr.
Para Janice Marques, diretora operacional da Center – e ao lado de Genivaldo di Pace a mais de 30 anos na produtora -, o “Sangue Azul” chegou num estágio que começou até a comprometer a ritmo do trabalho. “Mesmo contra a vontade de Genivaldo, a gente teve de estabelecer uma agenda para que ele atendesse as pessoas apenas numa hora e dia específico da semana”. Ela segreda que muito gente hoje nacionalmente renomada aprendeu o bê-a-bá da publicidade pela Center. Gilmar Luís, que trabalhou com Genivaldo por mais de 20 anos, conta que eles recebiam muitos estudantes de jornalismo com ideias para trabalhos de conclusão de curso. “A produtora disponibiliza uma equipe inteira, incluindo profissionais, carro, combustível e o almoço dos funcionários”.
E o “Sangue Azul” ainda acontece. Quem viu o badalado “O Som ao Redor” (2012), de Kleber Mendonça, deve lembrar de uma sequência em que o ator W. J. Sôlha caminha à noite até a praia de Boa Viagem e dá um mergulho no mar. “Aquilo foi filmado em um grua [espécie de guindaste no qual a câmera é instalada numa das pontas] que pertence Center”, segreda Mendonça. E continua: “Fui pedir apoio pela primeira vez na Center em 1991. Lá, conheci João Jr., que ao entender que eu queria fazer dois documentários sobre cinemas de bairro no Recife, ele me disse: É o tipo de projeto que Genivaldo gosta de apoiar”.
Mendonça diz que em 1996 voltou lá e Genivaldo apoiou o curta “Enjaulado” com um ano de filmagem e montagem. “Era um apoio sensacional e incomum. Havia um real sentido de generosidade e eu realmente acho que, mesmo sem cursos de cinema, editais, estúdios na época, nós tínhamos a Center”, concluiu. Já Camilo Cavalcante, contemporâneo de Mendonça, não esquece quando precisava de ajuda para rodar seu curta “Ocaso” (1997). “Depois de me ouvir, Genivaldo perguntou: É em 16mm que você quer filmar? Espera aí. – Daí ele abriu uma gaveta e me deu um rolo de filme virgem e ainda cedeu uma van para viajarmos a Bezerros [município no Agreste do Ipojuca de Pernambuco, a 99 quilômetros do Recife], onde filmamos. Com esse único rolo fiz o curta”.
Um dos mais recentes beneficiados foi o jovem jornalista Nelson Sampáio, com seu curta “A Última Diva do Ciclo do Recife” (2008). E por falar no cinema silencioso pernambucano, um nome que não pode ser dissociado ao da Center é o de Fernando Spencer, o mais antigo beneficiado pelo “Sangue Azul”. Autor de mais de 30 filmes, Spencer teve no mínimo 16 deles produzidos exclusivamente pela produtora. “Penamos para rodar -Capiba: Ontem, Hoje, Sempre- (1984). Tentamos por três vezes, e Genivaldo não desistia. Quando conseguiu por a mão no dinheiro, não me deixou perder tempo”, ressalta o diretor das três bitolas.
Genivaldo recebeu a reportagem do CinemaEscrito na produtora, situada há 13 anos na rua Aluízio de Azevedo, em Santo Amaro – tendo como endereço anteriores a rua da Concórdia, a rua do Príncipe e o bairro do Espinheiro (entre 1992 e 2000), todos no Recife. Mas, em função de sua memória comprometida, o contato conosco foi breve. Na curta conversa, porém, soltou a expressão que certamente era a sua marca quando recebia todos os sonhadores e realizadores pernambucanos: “Fique à vontade. A casa é sua”.
O “sangue azul” não tinha limites
Dois reconhecimentos marcam hoje a figura de Genivaldo di Pace, da produtora Center. Um é o prêmio que leva o seu nome e é concedido anualmente no Cine-PE pela Associação Brasileira de Documentaristas – Seção Pernambuco. O outro aconteceu em 2006, quando a Assembleia Lesgislativa do Estado lhe concedeu o título de cidadão pernambucano.
Genivaldo nasceu em Campina Grande (PB) e lá iniciou a carreira como locutor. “Dono de uma voz bonita”, lembra o amigo Spencer, ele debutou na rádio paraibana Cariri, indo depois para a Caturité. “No início dos anos 1960 já estava no Recife e trabalhei na Rádio Tamandaré e Capibaribe”, pontua Genivaldo.
Seu braço direito na Center, Janice Marques, conta que uma lenda circunda a história sobre o episódio em 1969 que envolveu a passagem da produtora Center das mãos do antigo proprietário, Fernando Puchain, para Genivaldo. “Contam que a Center passou para ele como pagamento de uma aposta, mas o Genivaldo nunca confirmou isso”, recorda divertindo-se.
Para muito além do apoio ao cinema pernambucano, Genivaldo ajudava instituições, dramatúrgos, músicos, atores. O jornalista Celso Marconi, por exemplo, registra que, ali nos anos 1980, quando programava o extinto Cine Ribeira, no Centro de Convenções, montava gratuitamente as vinhetas publicitárias na Center. “Depois veiculávamos na TV Globo e em outras emissoras”.
“No campo do audiovisual a Center era praticamente sozinha até o início dos anos 1980. Depois vieram a Spia, a Danpe, a Video Quatro Virtual”, recorda Janice. A produtora destaca a Center foi dona de diversas campanhas marcantes feitas para clientes como a Mesbla, Arapuã, Bompreço, Jumbo (hoje Pão de Açucar), além de campanhas políticas, como a da eleição indireta em 1982.
“Já chegamos a ter 100 pessoas na produção de uma campanha. Tudo era bastante elaborado. Lembro que passamos três meses treinando um cavalo na Praia do Francês [Alagoas] para usar num filme”, rememora Janice. Já nos anos 1990, programas para a TV como o “Gréia Geral” – com Walmir Chagas, Aramis Trindade, Cláudio Ferrario, Mônica Feijó, Lívia Falcão, Zé da Flauta, Lula Queiroga, João Falcão – eram gravados no estúdio da produtora. “Entre tantas peças, lembro uma em 1988 que Genivaldo ajudou a produzir. Era uma ópera pop com Patrícia Franca no elenco, que estreou no Teatro Valdemar de Oliveira”, conta a colega.
Sabe-se que, diferente do passado, a situação da produtora hoje não é confortável. Boa parte dos problemas seria resolvido se um grande cliente sanasse sua dívida. O atraso no pagamento é quase como um recado de que, no mundo de hoje, a persistente generosidade de Genivaldo di Pace precisa, infelizmente, ser cada vez mais ser policiada.
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