A voz do cinema
Reportagem (2006): Ivan Soares, trajetória
Por Luiz Joaquim | 27.12.2013 (sexta-feira)
Todos gostam de falar sobre cinema. Mas muito poucos têm o que dizer com propriedade sobre o assunto. Pernambuco ficou um pouco pobre neste aspecto, quando, nesta quarta-feira de natal (25/12/2013) se foi Ivan Soares, aos 81 anos.
Tive a oportunidade de, em 2006, ficar por uma manhã inteira (e foi pouco) conversando com o radialista, crítico de cinema, a respeito de sua trajetória profissional e, sobretudo, sua paixão pelo cinema.
Ivan, sempre elegante e discreto, falava com aquela voz que emoldurou por tantas décadas o programa “Sétima Arte”. Marcado pela humildade, o senhor sério e concentrado e de memória impressionante, deixava claro que o mais importante naquilo tudo que ele construiu era mesmo o cinema.
Por alguma razão nunca postei esta reportagem no CinemaEscrito.
Ela foi originalmente publicada no jornal Folha de Pernambuco, em agosto de 2006.
Que vocês possam, com o texto abaixo, aproximar-se um pouco mais de Ivan Soares, como eu me aproximei há sete anos.
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01 de agosto de 2006
LUIZ JOAQUIM
São muito poucos os profissionais com autoridade para
dizer que estão a frente de um trabalho de reconhecida
importância há mais de 50 anos. Em se tratando de
radialismo, tais profissionais são mais raros ainda.
Em Pernambuco, Ivan Soares, 73 anos, criador, produtor
e locutor do programa “Sétima Arte”, levado ao ar pela
99.9 FM, a Rádio Universitária, é um desses
profissionais.
O programa – que hoje é transmitido semanalmente,
sempre aos sábados, às 14h30, com reprise no domingo
às 11h30 – acontece há impressionantes e ininterruptos
41 anos. Talvez seja um recorde em termos de programa
de cinema no rádio. Curioso é o desinteresse de outras
emissoras pelo tema – não só cultural mais também
lucrativo. Quando o assunto é cinema, o padrão nos
outros veículos é divulgar a programação semanal,
discutir os concorrentes do Oscar e, mais
recentemente, cobrir o Cine-PE.
A importância que Ivan Soares dá, e sempre deu, ao
assunto é a de um apaixonado e estudioso. A paixão
nasceu ainda em Caruaru – onde nasceu – e ia às
sessões para conferir os títulos de Hollywood. “Desde
de pequeno, ficava por ali após a sessões para pegar
as sobras de película, as quais guardava com carinho”,
recorda.
À medida em que crescia, procurava aprender mais
comprando os melhores periódicos da época, como a
revista “A Cena Muda” dos anos 1940/50. E com a
chegada de títulos europeus ao circuito pernambucano,
o que era um entretenimento passou também a ser objeto
para reflexão. “Lembro que saí atordoado da sessão de
Torturas de Uma Paixão (Hetz, 1944), de Alf
Sjörberg. Foi o primeiro roteiro de Ingmar Bergman”,
relembra com sua memória sentimental.
Na tentativa de prolongar a boa sensação que os filmes
lhe proporcionavam, Ivan costumava viajar ao Recife
para comprar discos de trilha sonora. Por esses anos,
quando já escrevia para o Jornal Vanguarda, no
Agreste, procurou a Rádio Difusora de Caruaru (onde em
breve irá funcionar o Shopping e Empresarial Difusora)
e apresentou o projeto para um programa sobre cinema.
Aprovado e levando o programa ao ar no domingo, às
12h30, antes das concorridas sessões da cidade, a
audiência era garantida.
Anos mais tarde, já trabalhando no Recife, voltaria a
Rádio Difusora à convite de Anastácio Rodrigues,
prefeito de Caruaru de então. Mas Ivan voltava como
curador de um mostra de filmes franceses. “No mesmo
auditório da rádio, também funcionava um cinema. Eles
baixavam uma tela e se podia projetar filmes em 16mm.
A mostra repercutiu bem. A programação foi muito
ousada, em particular a sessão de Hiroshima Mon
Amour (1959), de Alain Resnais”, conta.
NO RECIFE
Em julho de 1958, por sugestão de um amigo, Ivan veio
morar no Recife para trabalhar numa agência
publicitária. Foi quando também procurou a Rádio
Jornal do Commercio e lá criou o “Cine Fã” no qual já
veiculava notícias e trilhas sonoras de filmes. O
programa ia ao ar três vezes por semana. Com dez
minutos de duração, complementava o “Cinelândia”, o
programa titular sobre o assunto na emissora. “Era
apresentado pelo José de Souza Alencar, o hoje
colunista Alex. Até que o gerente da rádio, Luís
Vieira, me convidou para assumir o Cinelândia, pois
o Alex ia migrar para a TV Jornal”, rememora. “Era um
sucesso. Alcançávamos toda o Grande Recife falando
sobre cinema”.
Ali, trabalhou por quatro anos. Daquele período,
relembra de entrevistas históricas com Anselmo Duarte,
“muito badalado na época por conta do prêmio de O
Pagador de Promessas (1962) em Cannes”, e com Nelson
Pereira dos Santos, “a quem fui pessoalmente trazer de
seu hotel até à rádio”.
Tímido, o radialista lembra de seu medo do microfone
no início, quando preparava todo o roteiro do programa
para um repórter gravar. Aos poucos o medo deu lugar a
uma coragem profissional de não só noticiar sobre
cinema mas também de compor criticas e crônicas
valorativas que marcaram época. E não só na rádio.
Ivan acumulava funções também como crítico, primeiro
com uma coluna dominical sobre cinema e teatro no
jornal “Diário da Noite” e depois, colaborando com
Fernando Spencer no “Diário de Pernambuco”, quando
fazia uma retrospectiva do mês.
Eram anos agitados e, junto aos amigos Spencer e Celso
Marconi (o então crítico do Jornal do Commercio), Ivan
foi o responsável por sessões de arte do extinto Cine
Coliseu, em Casa Amarela, um dos maiores cinemas de
bairro do Recife. “Marcou época, mas chegou um momento
em que as distribuidoras começaram a nos boicotar as
fitas e passamos a fazer mostras temáticas com cópias
de cinematecas”.
Ivan ainda chegou a acumular uma função na Empresa de
Turismo de Pernambuco – Empetur. Entre várias
colaborações para o acervo cultura da instituição, o
jornalista lembra da entrevista que fez com Alberto
Cavalcanti (1897-1982). Ainda nos anos 1960, procurou
aprimorar o conhecimento sobre publicidade indo fazer
um curso na Universidade Federal de Pernambuco, além
de ter cursado aulas de teatro na Escola de Belas
Artes.
Além de jornalista, radialista, publicitário, Ivan
estava para iniciar uma carreira atuando nos palcos.
Por meio de Hermílo Borba Filho, trabalhou no Teatro
Popular do Nordeste (TPN), quando lembra de duas peças
com carinho: “Galileu, Galilei”, de Bertolt Brecht, e
“A Resistência”, de Maria Adelaide Antunes.
QUATRO DÉCADAS NO AR
Ivan Soares transitava por vários meios de expressão,
mas sua primeira paixão continuava sendo o cinema. Foi
uma questão de (pouco) tempo até voltar ao radio.
Aconteceu quando Edmir Regis, diretor da Rádio
Universitária AM nos anos 1960, procurou Ivan para
tocar o programa “Sétima Arte”. A sede da emissora
ainda funcionava na rua do Hospício, e o radialista
já imprimiu um ritmo dinâmico ao programa.
Além de críticas, entrevistas e informativos Ivan
promovia algumas coberturas exclusivas, como as que
fez nos anos 1980, das edições 2 a 5 do internacional
FestRio – hoje Festival do Rio, o maior da América
Latina. O ritmo do programa era pontuado por trilhas
sonoras saídas de sua coleção particular. Coleção que
começou a formar ainda na adolescência em Caruaru,
quando viajava ao Recife para comprar discos.
Já adulto, as viagens eram para a Europa, para onde
foi por quatro vezes. “Lá, assisti os filmes que eram
proibidos no Brasil pela ditadura como -Z- (1969), de
Costa-Gavras, que vi na Alemanha; e O Último Tango em
Paris (1972), de Bertolucci, que vi em Londres”. As
viagens também serviam para abastecer a discoteca de
Ivan com discos raros, com os quais ele agraciava seus
ouvintes reproduzindo-os no programa; assim como
também abastecia o Recife, em primeira mão, com
novidades cinematográficas da Europa.
Para a pergunta se sua discoteca de trilha sonora é a
maior da cidade, Ivan, com sincera despretensão
responde: “Acho que não, tem muito fanático espalhado
por aí”. Hoje, o crítico lamenta não poder frequentar
os cinemas com a mesma assiduidade de antes. “Tenho
essa dívida hoje com meus ouvintes”, lamenta. Mas nem
por isso o “Sétimo Arte” é um programa fora de seu
tempo. No sábado 22, por exemplo, o programa foi
dedicado à memória de Raul Cortez, no qual Ivan
apresentava a bela trilha sonora de “Lavoura Arcaica”,
de Luiz Fernando Carvalho.
Nos últimos anos, a voz que era comum nas ondas do
rádio, pôde ser ouvida nas salas de cinema, em várias
partes do mundo, através do curta-metragem “Vinil
Verde”, de Kleber Mendonça Filho, no qual Ivan faz a
narração e empresta alma e dignidade no ato de contar
uma história.
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