Vida Minha – Autobiografia
Todos os Domingos num só
Por Luiz Joaquim | 24.03.2015 (terça-feira)
Ele revisou a vida e a pôs num livro. Não é um pouco. Mas, a vida de um homem não cabe num livro, como diz o próprio Domingos Oliveira em seu “Vida Minha – Autobiografia” (Record, 334 págs., R$ 55). Dramaturgo, cineasta, poeta, homem do mundo e apaixonado febril (redundância!) pela arte e pelas mulheres… Talvez estas palavras dêem uma ideia próxima do que Domingos andou aprontando ao longo de seus 78 anos ainda ativos. Mas estas palavras, ainda assim, não dizem quem ele é.
Pelas suas realizações, até chegamos próximo ao artista, mas também não o decifraremos. Números podem ajudar a entender a dimensão de seus feitos – em mais de 60 anos de profissão é diretamente vinculado a mais de 130 títulos encenados, tendo escrito 23 peças, dirigido 59, ter lançado seis traduções e dirigido 16 longas-metragens – entre eles uma obra-prima do cinema brasileiro chamada “Todas as Mulheres do Mundo” (1967), filme que o lançou, assim como também sua, à época, segunda ex-esposa, a atriz Leila Diniz (1945-1972). Mas, mesmo assim, Domingos poderá ser um mistério.
O que ajuda é que, como afirma o artista, ele passou a vida inteira escrevendo sobre ele mesmo, de forma que o sentimento de ler “Vida Minha” não é tão diferente daquele de ver um de seus filmes, ou assistir uma de suas peças. Mas, hoje dedicando-se a escrever um novo livro – “O Primeiro dia da morte de um homem” – e a rodar ainda em 2015 seu 17º longa-metragem, o que o levaria a publicar, a essa altura da vida, sua autobiografia?
“O fato das editoras estarem demonstrando interesse. Em outras palavras, o adiantamento que elas podiam me dar. Preciso pagar as contas. Eu tinha diários escritos há muitos anos, mas confesso que nunca considerei fascinante ou maravilhoso escrever uma biografia. Afinal é sempre um recorte pobre e tímido do homem que um dia existiu. Porém ao longo da escrita tive muitos prazeres .O maior foi saber que não apenas a literatura dramática, mas a prosa estava a minha disposição. Eu tinha um estilo!”, explica Domingos, por e-mail.
Quase sempre com orações curtas e certeiras, Domingos, como excelente frasista que é, detalha aqui bastante de si, mas com uma bela economia e eficácia no uso das palavras. Fala sobre sua família, a infância, as amizades juvenis, os primeiros amores, as eternas paixões, o teatro e o cinema (não apenas o seu). Livre em sua narrativa, quase um desobediente no quesito cronológico, o que sobressai na leitura é a leveza como o autor traduz sua visão de mundo.
Nesse sentido, expondo de forma muita aguda e tocante sua perspectiva de poeta sobre o que aprendeu em sua existência, “Vida Minha” lembra o estilo que está em “Confissões” (1938) espécie de livro de memórias escrito por outro dramaturgo e literata, o inglês William Somerset Maughan (1874-1965). Domingos conta que aos 18 anos o adorava.
“Maughan, uma das primeiras bichas assumidas da literatura, me marcou muito com -Histórias dos Mares do Sul-, -Theatre- e naturalmente -O Fio da Navalha-, que foi uma bomba no meio da garotada daquele tempo. Hoje esqueceram quase completamente dele. Até me surpreendi com esta referência que você faz. Pensei em vários modos de organizar a narrativa da minha biografia, pelos filmes, pelas peças, pelos acontecimentos sociais mas acabei organizando através dos casamentos. Sou aquilo que as mulheres que eu tive fizeram de mim”, define-se.
Desta forma, não é à toa que o autor dedica capítulos inteiros às principais mulheres de sua vida. As esposas Eliana, Leila Diniz, Nazarathe Ohama (que posteriormente daria a luz a Cláudia Ohana, fruto de outra união), LenitaPlonczynski (com quem teve a filha Mariana), e Priscilla Rozenbaum, com quem mantém, até hoje, uma união de 34 anos. Para Priscilla, são dois, os capítulos, além de alguns outros respingos de amor ao longo do livro.
Das mulheres, das artes
Fã de Woody Allen (além de Fellini, Chaplin e Kubrick) – “um dos maiores prazeres da minha vida é quando o jornal anuncia um novo filme de Allen” -, o próprio Domingos Oliveira viveu uma situação muito próxima daquela que o baixinho novaiorquino desenhou em seu filme “Manhattan” (1979). No enredo, Allen é um homem de televisão (Domingos trabalhava na TV Globo) e namorava a adolescente Mariel Hemingway. Priscila tinha por volta de 20 anos, quando Domingos, 23 anos mais velho, começou a namorá-la. “Eu e ela sempre gostamos de Woody. Todo ele. Os preferidos de Priscilla são -Crimes e Pecados-, -Manhattan- e -Dirigindo no Escuro-. Quando caímos de paixão estava em cartaz -Zelig-“, revelou.
Em “Diário da Dor”, um dos capítulos mais duros de “Vida Minha”, Domingos fala da doença nada elegante que o fez sofrer de dor – uma erisipela – e cantar de alegria quando dela curou-se; e uma outra que o incomoda mas não o impede de seguir criando, o Mal de Parkinson – “Os médicos dizem que sou um fenômeno, porque não tremo, e assim a doença não me atrapalha o trabalho”.
Em contrapartida, o que vem a seguir é uma deliciosa conversa entre o septuagenário Domingos contrapondo anotações que ele escreveu aos 50 anos de idade. O livro encerra com o autor nos oferecendo um suposto texto que escreveu aos 26 anos de idade para a Tribuna da Imprensa sobre um filósofo que encontra Deus em Saturno. Não demora para percebermos que acontecimentos descritos não dizem respeito ao ano de 1962. Mas se Deus, conforme diz o texto, “é aquele para quem todo o tempo é presente”, e todo autor é um Deus, só dessa forma para termos todos os Domingos num só.
PROJETO – Domingos Oliveira pretende rodar ainda no primeiro semestre deste ano seu 17º filme. “Ando irritado com o -cinema profissional-, que não tem espaço no mercado, mesmo se for excelente. Volto a ser o que sempre fui e preferi: um experimentalista.O novo filme será em preto e branco, dublado e filmado com câmera Go-Pro (equipamento miniaturizado)”.
TRECHOS
“Os homens são animais acidentais. Têm pelo menos três características nítidas: polegar opositor, são bípedes, e acham que possuem uma alma e discutem o tempo inteiro se ela é moral ou imoral.
Ridículo.
São jogadores envolvidos num jogo, cujas regras eles mesmos inventaram, esquecendo-se disso depois”
“A paixão é, sem dúvida, o sentimento magno do ser humano. O Himalaia da imaginação de Deus. Deveríamos perseguir na rua pessoas as apaixonadas. Para beijar-lhes as mãos e ajoelhar diante delas, rezando para que aquela paixão dure para sempre”
“Se você tem um caso de amor que dura um ano, acontece muita coisa. Se te outro caso de amor que dura dez, ainda é muita coisa que acontece. Se é a mulher de sua vida, com quem tem um caso há trinta anos, você tem a impressão de que nada aconteceu. Por que será assim?”
“Sou um autor sério, que faz o maior esforço para fingir que não é”
“Bach é a única coisa que pode nos dar a impressão de que o universo não é um projeto fracassado… Bach compromete a ideia do nada”.
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