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Reportagens

Herói que destrancou o cinema pernambucano

Simião realizou sete longas-metragens com recursos próprios e virou referência nacional

Por Luiz Joaquim | 28.04.2015 (terça-feira)

O dia de ontem amanheceu sob a triste notícia de que aquele que talvez fosse a melhor personificação da forma de se fazer cinema em Pernambuco havia falecido. Ele era Simião Martiniano, 82 anos, diretor de sete longas e um média-metragem que tornou-se conhecido em todo o Brasil em 1998 a partir do curta “Simião Martiniano: O Camelô de Cinema”, rodado por Hilton Lacerda e Clara Angélica.

Internado na Santa Casa de Misericórdia do Recife desde o início de abril, Simião tratava de um câncer no esôfago. “Ontem [domingo], ele apresentou problemas nas via respiratórias e começou a receber novo tratamento com oxigênio. Mas o cansaço só aumentava”, informou Lidiane Ataíde, que forma o grupo dos 12 netos de Simião. O cineasta também deixa cinco filhos e cinco bisnetos.

O último trabalho concluído de Simião – como ator – foi “A Volta do Filho da Terra”, dirigido por seu colega José Manoel, em 2014. Manoel soube que Simião tinha a ideia de voltar à terra onde nasceu – Ximênes, região a 20 quilômetros do município de União dos Palmares (AL) – e decidiu acompanha-lo na difícil viagem que o cineasta faria pela primeira vez, 65 anos após ter deixado o lugar. A ideia era dramatizar o reencontro de Simião com seus familiares, tendo o próprio artista no filme como protagonista de sua história.

Morando em Pernambuco desde 1960, quando chegou ao 27 anos, Simião residia na comunidade de Socorro, em Jaboatão dos Guararapes, com a esposa e uma neta. Foi naquela mesma década que Simião teve sua primeira experiência no cinema, quando conheceu o realizador Pedro Teófilo que o convidou para interpretar um soldado holandês no filme não concluído “Quando o Gigante Desperta”.

Em 1976, Simião apareceria atuando como um camelô, no filme “Luciana, A Comerciária”, de Mozart Cintra. O longa-metragem, rodado em 35mm, nunca chegou a ser exibido comercialmente, tendo sido visto apenas pela crítica cinematográfica da época.

Aquele ator só viria a ocupar a função de camelô na vida real, vendendo discos de vinil e fitas VHS, em 1988. A essa altura, ele já era conhecido pelo longa-metragem “O Herói Trancado” – sobre a assassinato de um empregado de um engenho e a promessa de seu irmão em vingar a sua morte. Este típico western nordestino foi gravado no formato VHS, cujas cópias eram comercializadas pelo próprio Simião.

Antes, em 1979, o cineasta já havia rodado na bitola Super-8 o longa “Traição no Sertão”, sobre um menino que é adotado por um capitão depois de fugir de uma emboscada feita por dois pistoleiros contra os pais do menino. De certa forma, a história do menino adotado em “Traição no Sertão” é um pouco a história de Simião, que fugiu de casa aos dez anos e passou a dormir na rua até ser adotado, na adolescência, pelo dono de um engenho. A situação é o mote do curta “A Volta do Filho da Terra” (2014). Nele, Simião atua num misto de documentário e dramatização, contando essa história.

Dono de uma incessante paixão pelo cinema, o “Câmelo de Cinema” realizou todos os seus trabalhos estimulado pela crença de que um bom filme de ação precisava incluir Amor, Traição, Violência e Morte. Ao seu modo, tornou-se não apenas uma referência do cinema de margem, naif, que é feito no País, como também viu suas obras virarem objeto de pesquisa em universidades, além de ter-se tornado uma personalidade única e muito querida no cenário do cinema local. Simião deverá, enfim, ser sempre lembrado como o melhor exemplo de perseverância quando o assunto é fazer filmes no Nordeste.

PROJETO – Em janeiro de 2014 Simião esteve na redação da Folha e anunciou o novo enredo que queria produzir. Era “O Tiro Acidental”. Baseado numa história real, a situação foi vivida pelos primos do cineasta quando crianças. “Quero filmar em Jaboatão [dos Guararapes], dentro da mata e na cidade. Vamos falar de três primos que saem para caçar e por conta de um tiro acidental acontece uma morte”, adiantou à época.

Kleber Mendonça Filho
“Era uma fonte de energia inesgotável. Fazia cinema antes das produções de Pernambucano ganharem o respeito que possuem hoje, e continuou fazendo também depois disso. Fazia o cinema que queria, e como podia. Era inspirador nesse sentido e sempre será um símbolo de como fazer cinema de forma independente”.

Paulo Caldas
“Sempre fui muito impressionado com a figura aparentemente simples, mas dona de uma sabedoria popular imensa, que era a de Simião. Acompanhei as filmagens do curta de Hilton [Lacerda] e Clara [Angélica] e o conheci melhor. Até que lhe fizemos uma homenagem em “O Rap do Pequeno Príncipe contra As Almas Sebosas” (2000, co-dirigido com Marcelo Luna) quando incluindo um trecho de seu filme “O Vagabundo Faixa Preta”. Espero que alguma instituição preserve seus filmes para futuras gerações conhecerem esse apaixonado por cinema”.

Hilton Lacerda
“Quando ninguém fazia cinema, Simião se reinventava. O que mais me impressionava era seu exemplo como figura resistente que realizava um cinema dentro de um processo extremamente popular. Uma curiosidade de quando fizemos o curta (“O Camelô de Cinema”, com Clara Angélica), pensávamos muito se faríamos como um falso documentário ou uma falsa ficção, e o Simião colaborava contando sua própria história na 3ª pessoa. E a gente se perguntava, o que era verdade e o que não era? Simião era sem dúvida um grande personagem de nosso cinema no século 20″.

Lírio Ferreira
“Conheci Simião no final da décade 1980 quando ele ainda vendia disco perto do Cinema Moderno. Eu dirigia um programa para a TV Pernambuco chamado “No Ar”, e ele foi o personagem de nosso segundo programa, o primerio foi Cleto Mergulhão. No quadro, meio ficção, meio documentário, Bruno Garcia era um detetive que recebia uma missão, investigar sobre alguma personalidade de cinema. A gente era um bando de menino saído da faculdade e admirava bastante aquela figura com tanta paixão por cinema que trabalhava como camelô durante a semana e fazia filmes nos finais de semana”.

Filmografia

COMO DIRETOR

Traição no Sertão (1995-1996, 123 min)
(Filmado em Super 8, em 1979)

O herói trancado (1988-1989, 125 min)

A rede maldita (1990-1991, 123 min)

O vagabundo faixa preta (1992, 97 min)

A mulher e o mandacaru (1993-1994, 119 min)

A moça e o rapaz valente (1997-1999, 119 min)

A valise foi trocada (2007, 120 min)

O show variado (2008, 40 mim)

COMO ATOR

“Quando o Gigante Desperta”, (anos 1960, não concluído),
Dirigido por Pedro Teófilo

Luciana, A Comerciária (1976, 85 min.)
Rodado em 35mm, direção de Mozart Cintra

“Simião Martiniano: O Camelô de Cinema” (1998, 14 min.)
Dirigido por Hilton Lacerda e Clara Angélica

“A Volta do Filho da Terra” (2014, 20 min.)
Dirigido pelo José Manoel

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