Memórias do Subdesenvolvimento
Obra de arte que se refina
Por Luiz Joaquim | 21.04.2015 (terça-feira)
Em dezembro de 2014, o presidente norte-americano Barak Obama iniciou uma conversa com o ditador cubano Raul Castro para dar partida a um processo de aproximação e reatar os laços diplomáticos cortados desde 1961 por conta da Revolução Cubana, que derrubou em 1959 – sob o comando de Fidel Castro – o então ditador Fulgência Batista. É em meio a esta ação, que é um dos mais comentados processos diplomáticos do mundo, que o Instituto Moreira Salles relança em DVD a versão restaurada de uma obra-prima da cinematografia cubana. O filme “Memórias do Subdesenvolvimento” (1968), dirigida por Tomás Gutiérrez Alea a partir do livro homônimo escrito em 1961 por Edmundo Desnoes.
Situado entre 1961 e 1962, o enredo acompanha o intelectual burguês Sérgio (Sérgio Corriere), 38 anos, com uma perspectiva subjetiva (a do personagem) que, no fervilhar inicial da revolução socialista da ilha, não tem ocupação e vive do aluguel de seus diversos apartamentos. Solitário, Sérgio acompanha seus pais e esposa até o aeroporto de Havana para vê-los partir definitivamente para os EUA.
Curioso pelos próximos passos daquela Revolução, que ele não acredita nem participa, o protagonista passa os dias a observar com desdem a cidade do alto de seu confortável apartamento através de uma luneta, questionando com constante ironia aqueles que acreditam numa mudança radical do país pela nova estrutura política revolucionária.
Mas o que torna “Memórias…” um marco daquilo que se chamou à época de “Novo Cinema Latino-Americano” – simbolizado principalmente pelo Instituto Cubano del Arte e Industria Cinematográficos (ICAIC) – foi o fato do filme mesclar, num incrível exercício de montagem, registros documentais e semi-documentais, imagens de arquivo e cinejornais ilustrando a narrativa ficcional de Sérgio.
“O filme é uma obra inovadora e de referência que trouxe contribuições efetivas paro campo cinematográfico não só por motivos estéticos, mas também políticos”, destaca o pesquisador e professor da Universidade Católica de Pernambuco, Cláudio Bezerra. “Em termos estéticos, entre outras coisas temos a narração em primeira pessoa, o interesse pela subjetividade, a câmera na mão e, sobretudo, um diálogo profícuo entre ficção e realidade, seja na inserção de cenas de arquivo da revolução ou pela filmagem do personagem fictício Sérgio, em situações reais, como a cena em que ele caminha em direção contrária à multidão que se dirige às comemorações do Primeiro de Maio”, aponta Bezerra.
O documentarista Vladimir Carvalho lembra que a obra fui muito festejada à época, e Titón – como Gutiérrez Alea era chamado pelos amigos – “disse tudo com seu filme”. “Ele foi o que melhor traduziu no cinemas as contradições daquele momento histórico. Seu filme é algo que nos faz, antes de tudo, pensar. E revê-lo hoje, quando Cuba vive o que podemos chamar de -futuro-, tendo como ressonância da trajetória do país desde 1959 – passando pela Revolução, a dependência da União Soviética, depois o embargo norte-americano e finalmente reencontrando os EUA – mostra como o filme já questionava, lá atrás, superações que precisavam ser sobrepostas naquele momento”, analisa.
Para o cineasta Marcelo Lordello, o que encanta é exatamente ter um burguês como protagonista, mas com um posicionamento crítico sobre o que acontece. “Por mais que não concordemos com tudo, não dá para ignorar seu raciocínio e questionarmos o que vai acontecer com Cuba dali para frente pelos preceitos ideológicos da luta revolucionária”, diz.
Lordello aponta três instâncias de tensões aqui. “A de Sérgio, quase como um inimígo da Revolução, mas com um olhar novo, o da burguesia que está se desconstruindo, assim como o país, com aquilo tudo; a dos registros documentais vistos no filme, com sua suposta objetividade sobre o povo; e os interesses do Gutiérrez Alea que parece a favor da Revolução, mas não uma stalinista, e sim crítica a isto”.
De fato, dizem que o escritor Desnoes – que aparece no filme num debate, que é um de dos momentos mais irônicos da obra – não gostou do resultado do filme e, da mesma forma que o dividido Sérgio, ele nunca se decidiu sobre o apoio ou não à Revolução de Fidel.
Para além da revisão urgente de “Memórias do Subdesenvolvimento” por conta da atual diplomacia entre EUA e Cuba, Cláudio Bezerra ainda destaca que o filme pode ser útil para se discutir a política brasileira hoje. “Tal como o personagem burguês fictício Sérgio, que nunca participa de nada e observa tudo à distância por sua luneta, em tempos de internet muito gente também observa e critica as coisas de longe, sem se envolver de fato, a exemplo das atuais manifestações contra a presidente Dilma”, resgata.
“Mas ao contrário de Sérgio, cuja descrença com a revolução cubana não o levava a se identificar com os valores do passado, nem mesmo era fruto de um individualismo total, desconfio que parcela considerável dos que criticam hoje são absolutamente individualistas e se identificam com tempos sombrios”, conclui.
HISTÓRIA – Vladimir Carvalho lembra que quando foi premiado por seu filme “A Paisagem Natural”, em Salvador, na Jornada de Cinema de 1991, conheceu o protagonista de “Memórias do Subdesenvolvimento”, Sérgio Corriere. Ao final da premiação, fui cumprimentá-lo e não esqueço de como percebi seu orgulho por ter participado de um projeto tão importante como aquele.
EXTRAS – Um dos mais valiosos extras constando no DVD “Memórias do Subdesenvolvimento” lançado pelo Instituo Moreira Salles é aquele que o filme é apresentado com uma faixa de áudio com comentários de Eduardo Coutinho, Nelson Pereira dos Santos e Walter Salles.
SERVIÇO
DVD “Memórias do Subdesenvolvimento” (1968)
de Tomás Gutiérrez Alea
Instituto Moreira Salles
R$ 52,90
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