Vício Inerente
– Tire o dinossauro da coleira! –
Por Luiz Joaquim | 01.04.2015 (quarta-feira)
No vasto universo da internet, entre tantos vídeos bobos postados diariamente, um deles sobressaiu-se há alguns dias pelo inusitado. A perspectiva era a de uma câmera que se aproximava de um carro estacionado. Dentro dele, um volume de fumaça que não permitia enxergar o que se passava ali dentro. Até surgir um rosto no meio da fumaça e o “cinegrafista” lhe perguntar o que estava acontecendo. O sujeito dentro do carro arria o vidro, liberando a fumaceira, e grita para o desconhecido: “Tira o dinossauro da coleira!”.
Parece não ter sentido, mas tem se entendermos o contexto. É assim que, provavelmente, muitos espectadores irão se sentir ao assistir o novo trabalho de uma dos mais (merecidamente) respeitados diretores da nova geração norte-americana, Paul Thomas Anderson, 44 anos, com seu “Vício Inerente” (Inherent Vice, EUA, 2014), chegando amanhã (02/04) aos cinemas do Brasil.
Não é apenas o contexto do diálogo absurdo do vídeo que o aproxima do filme. A situação esfumaçada é a mesma em que vive o fedorento maconheiro hippie e detetive particular, Larry “Doc.” Sportello (Joaquim Phoenix, ótimo). O ano é o de 1970. O local é o litoral ensolarado de Golden Beach, Califórnia.
Numa narração em off que remete ao passado – sempre pontuada por curiosidades astrológicas -, escutamos a voz de Sortilège (Joanna Newson), amiga de Doc., contando a aventura do detetive quando ele é instigado a um novo trabalho pela ex-namorada Sasha (Katherine Waterston), a qual Doc. ainda tanto ama.
Sasha sugere que ele investigue o desaparecimento do atual amante dela, Wolfmann (Eric Roberts), um milionário do setor imobiliário que está desconfigurando a região construindo condomínios residenciais fechados.
A proposta leva Doc. a caminhar (ou seria melhor dizer, a tropeçar) para dentro de uma emaranhada rede de relações que envolve corrupção policial, o FBI (destaque para Reese Witherspoon) e um circuito de narcotráfico incluindo um sindicado de dentistas (atenção em Martin Short). Mais destaque ainda merece Josh Brolin como o policial Pé Grande. Está brilhante com seu constante olhar que parece dizer “você violou a lei dos direitos civis”, como bem observa a narradora Sortilège.
Não vá pensar o leitor que a condução das informações em “Vício Inerente” é facilmente assimilável. Será preciso, para alguns espectadores, assistir o filme uma segunda vez para apreendê-lo em toda sua sofisticação. E não é preciso sentir culpa por isso.
“Vício Inerente” é um belo exemplo de adaptação cinematográfica de um romance. No caso, o terceiro escrito por Thomas Pynchon. No filme, P.T. Anderson faz uma redistribuição precisa das diversas situações que o autor criar em torno de diversos personagens ambientados, malucos e drogados, num contexto sociopolítico apinhando de hippies e com a sociedade já sob a paranoia do assassinato, um ano antes, de Sharon Tate promovido pela seita de Charles Manson.
Com o humor sempre pautado pelo estilo, digamos, livre de Doc. & companhia, a graça de “Vício Inerente” quase sempre pega o espectador de surpresa, e agrega à filmografia de P.T. Anderson mais um refinado e original desenho sobre a sociedade americana.
Assim como os corpos encontram e se desencontram na montagem de “Boogie Nights: Prazer sem Limites” (1997), assim como vemos um profeta ascender no matemático “Magnólia” (1999), assim como vemos a fusão do sangue jorrando junto ao petróleo em “Sangue Negro“ (2007) e assim como vemos uma religião surgir atendendo pessoas fragilizadas em “O Mestre” (2012). É a vez de entendermos a ótica hippie pelos olhos de P.T. Anderson. E nela tirar o dinossauro da coleira faz todo o sentido.
OSCAR – Mal comparado pela crítica com “Boogie Nights: Prazer sem Limites” (1997), outro filme do diretor situado nos anos 1970, “Vício Inerente” tem sua própria personalidade e ritmo. O filme foi indicado ao Oscar 2015 pelo figurino e roteiro adaptado.
0 Comentários