Que Horas ela Volta?
Ainda somos os mesmos? Filme de Anna Muylaert mostra os resquícios da cultura da Casa Grande e da Senzala
Por Luiz Joaquim | 27.08.2015 (quinta-feira)
Foi da produtora de cinema Isabela Cribari uma das pontuações mais interessantes sobre “Que Horas Ela Volta?” (Bra., 2015), filmes de Anna Muylaert que estreia hoje em todo o Brasil. Logo após assistir a pré-estreia, sexta-feira passada, em sessão que inaugurou o Cinema do Museu do Homem do Nordeste, na Fundaj em Casa Forte, Cribari refletiu: “É muito simbólico que seja esse o filme a inaugurar este cinema, dentro de uma instituição idealizada por Gilberto Freyre”.
De fato. Uma vez visto, o filme não pode deixar de ser associado a “Casa Grande & Senzala” ao expor, nos dias de hoje, os resquícios da cultura colonialista em termos de convivência social. E o que há de mais evidente, ainda no campo da associação, a ser dito sobre a urgência de “Que Horas ela Volta?” é sua intrínseca comunicação com os filmes “O Som ao Redor” (2012), de Kleber Mendonça Filho, e “Casa Grande” (2014), de Fellipe Barbosa
Com uma representação clara na contemporaneidade do comportamento do Senhor (Carlos, o personagem de Lourenço Mutarelli) e da Senhora de Engenho (Bábara, vivida por Karine Teles), temos a figura da empregada doméstica Val (Regina Casé, inspirada) que mora no quartinho dos fundos da casa dos patrões há mais de dez anos.
Durante todo esse período, criou à distância a filha Jéssica (Camila Márdila, excelente), que deixou em sua terra natal, Pernambuco. Até que, aos 17 anos, Jéssica diz que vai a São Paulo fazer a prova do vestibular para a mais concorrida faculdade de arquitetura de São Paulo, cidade onde a mãe trabalha.
Hospedada na casa dos patrões da mãe, Jéssica, com seu espírito livre e sagaz, começa a reverter a situação colocando sob nova perspectiva o modo como Val se comporta e o modo como seus patrões lhe tratam. Ainda nesse cenário, Muylaert também apresenta o carinho exacerbado de Val por aquele que ela que ajudou a criar: Fabinho, o filho dos patrões (Michel Joelsas), com a mesma idade de Jéssica.
Há aqui também o constrangedor desejo e assédio do patrão Carlos por Jéssica. Ou seja, numa só tacada, Muylaert encaçapa vários pontos com analogias daquilo que foi o comportamento colonialista mas que ainda dizem muito à respeito da nossa atual cultura.
Para tanto, Muylaert desenhou personagens consistentes que se apresentam numa interação muito próximo do natural. Com uma larga experiência na televisão – nas séries “Castelo Ra-Tim-Bum” (1995) e “Um Menino Muito Maluquinho” (2006), e no cinema com “Durval Discos” (2002) e “É Proibido Fumar” (2009), entre outros -, a cineasta conseguiu criar uma fluidez sedutora em sua narrativa. Daquelas que, em pouco tempo, se esquece que estamos num filme e nos percebemos entre amigos.
Já próximo do final, numa importante cena na piscina, Val parece começar a antecipar aquilo que viria a ser sua alforria. É apenas nesse momento delicado que Muylaert aceitou inserir uma melodia musical em seu filme. Ela entra acertada, emoldurando a emoção simples e poderosa que Casé soube tão bem condensar.
Uma coisa é certa. Risadas serão ouvidas em todas as sessões de “Que Hora ela Volta?”. Algumas acompanharão o riso de Val. Outras rirão de Val. Para o segundo caso seria interessante o espectador tentar se colocar no lugar da personagem e repensar os próprios valores.
OSCAR – Depois de ganhar prêmios em diversos festivais, como o de Berlim e de Sundance (EUA), “Que Horas Ela Volta?” já estreou em mais de 20 países. Nesta semana, conquistou o prêmio da audiência, com o maior score da história, do World Cinema Amsterdam. Nos bastidores, comenta-se que temos um novo forte candidato ao Oscar de filme estrangeiro para 2016.
BATE-PAPO – No sábado (29), a diretora Anna Muylaert participa de um bate-papo no Cinema do Museu do Homem do Nordeste após exibição de seu filme, que inicia às 19h30.
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