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Clássicos

São Paulo S.A.

Opressão e angústia na cidade

Por Luiz Joaquim | 12.02.2016 (sexta-feira)

Era 1965 quando São Paulo Sociedade Anônima chegou aos cinemas. A intelectualidade brasileira ainda estava atordoada com o Cinema Novo que, no ano anterior, o ano do golpe militar, havia definitivamente marcado seu terreno político discursando pelas imagens de Leon Hirszman (Maioria Absoluta), de Ruy Guerra (Os Fuzis) e, principalmente, de Glauber Rocha (Deus e O Diabo na Terra do Sol).

Como um contraponto a estas vozes, que vinham todas do Rio de Janeiro, Luís Sérgio Person gritou lá da capital paulista seu primeiro longa-metragem. Tão contestador social quanto os rebentos dos cinemanovistas, São Paulo S/A também questionava o modo de vida brasileiro. Seu diferencial temático, entretanto, era mostrar essa perspectiva a partir do já caótico e angustiado cotidiano da classe média urbana, um segmento até então relegado pelo nosso cinema. Em termos estéticos, o diferencial no filme de Person contra as obras dos cinemanovistas era abissal.

Tendo voltado do Centro Sperimentale di Cinematografia, em Roma (onde estudou cinema e fez o curta-metragem, Al Ladro, que representou a Itália no Festival de Veneza), Person desenvolveu para São Paulo S/A um perfil plástico e narrativo cheio de sofisticação. O mesmo que o havia impressionado na Europa, produzido na segunda metade dos anos 1950 e na primeira metade dos anos 1960.

Isso pode ser traduzido mais fortemente nas então correntes estéticas celebradas daquele momento: a Nouvelle Vague francesa o Neo-Realismo italiano – sendo Jean-Luc Godard uma de suas referências na França e o “poeta da melancolia”, Valério Zurlini, sua luz na Itália.

Por esse aspecto, temos neste, que é o mais emblemático filme de Person, uma sequência de abertura que é uma das mais eloquente e resumitiva no cinema brasileiro. Em um único plano vemos, por trás de uma porta de vidro, um casal que ainda não conhecemos. Eles discutem, brigam e o embate é concluído com ela sendo empurrada ao chão por ele.

O teor da briga não é conhecido, é uma cena silenciosa, ou melhor, sussurrada. E como uma espécie de testemunha, e também uma espécie de agente responsável e promotor por essa tensão entre o casal, temos compondo o mesmo quadro, no reflexo do vidro, a cidade de São Paulo.

É a essa paisagem de infinitos e frios prédios – que a tudo parece olhar com empáfia – para onde a câmera irá se dirigir, enquanto a mulher chorando no chão vai ficando para trás. Agrega-se à imagem a música criada por Cláudio Petráglia que só reforça o aspecto opressor daquele cenário. E, como iremos entender ao longo do filme, é ela, a cidade, que esmaga e mói seres-humanos.

Na sequência, são os sons da própria urbe, com seus pedestres falantes e buzinas de automóveis, que tomam o áudio de assalto, não deixando dúvida sobre seu co-protagonismo nesta história a respeito da gradual escalada de Carlos (Walmor Chagas) a um colapso que flerta com a insanidade.

Para entendermos essa escalada, Person nos coloca em São Paulo S/A dentro do artifício de elipses na narrativa. Vem acompanhada de cortes secos e um tom documental (a linha de montagem da Vokswagen e a corrida de São Silvestre invadem o filme a certa altura) em oposição a encenação precisa de Walmor Chagas e grande elenco. Tudo isso amarrado pela já falada trilha sonora de Petráglia, em tom operístico e catastrófico, e pela contrastante fotografia em P&B de Ricardo Aronovich.

Ali, Chagas protagonizava pela primeira vez no cinema, e num papel que iria marcar sua carreira. O seu Carlos, dos 25 aos 30 anos, entre 1957 e 1961, viu crescer em si uma angústia esmagadora, impulsionada pela tirania das urgências e regras sociais da cidade grande, com a industrialização também em franco crescimento naquele período. Daí surge um homem frustrado, que sem compreender muito bem a razão de sua própria inquietação, passa a enxergar seu destino sob uma ótica nebulosa.

Person nos apresenta a construção dessa confusão distribuindo e misturando os conflitos de Carlos nos dois campos que definem um homem em sua forma mais objetiva: o profissional e o sentimental. A beleza de São Paulo S/A, o filme, é que nessa fusão dos leitmotiv básicos dos homens, há um terceiro elemento ativo que interfere diretamente nas decisões e indecisões do anti-heroi que é nosso protagonista.

Esse terceiro elemento reside tanto na forma concreta e opressora da selva de concreto que é São Paulo, ou qualquer outra grande metrópole, quanto nas exigências sociais que a convivência num lugar assim demandam.

Carlos tem de ser um vencedor, e sempre estar um paço a frente daqueles que o cercam. Mas sob que preço e, principalmente, por quê? Nesse sentido, de perguntas tão profundas, São Paulo S/A é um filme eterno em suas questões atemporais e universais.

Num de seus diversos momentos de auto-reflexão, que conhecemos pela narração em off de Walmor Chagas, Carlos veraneia num final de semana na casa de campo de Arturo (Otello Zeloni), seu chefe e futuro sócio na fornecedora de peças para automóveis.

Carlos diz, “Arturo é o grande exemplo”. Mas o tom é irônico. “Arturo é bom. Arturo é rico. Massacra com seus operários. Rouba quanto pode. Tem grandes e desonestas ambições. Mas Arturo é o grande exemplo”. O mais contundente comentário nessa sequência vem, entretanto, pelo campo formal criado por Person.

Acontece quando a esposa de Carlos continua o raciocino em off – mas sem ironia, sendo desejosa e acreditando no que pensa. Ela reforça que o futuro do jovem casal que faz com Carlos será igual ao de Arturo. O raciocínio é finalizado com a queda da eletricidade, deixando o “futuro” de todos ali presentes naquele jantar numa total escuridão.

No campo sentimental de nosso anti-herói conhecemos três de suas mulheres que, de uma forma ou de outra, acompanham sua trajetória. Luciana (Eva Wilma), com quem se casa por “cansaço e preguiça de escolher coisa melhor”, é o porto seguro para “acertar a vida”. Luciana séria um “igual”, no qual Carlos vê a possibilidade de manter e desenvolver o seu lugar na sociedade.

Há Ana (Darlene Glória), que é uma modelo a preferir homens endinheirados; representando o prazer carnal, mas também a alienação. E há Hilda (Ana Esmeralda), sendo aquela que mais perturba Carlos com suas ansiedades. Ansiedades que reforçam, na realidade, uma vida vazia. Vazia como aquela que Carlos quer escapar mas não consegue.

Jean Claude Bernardet, em seu livro Brasil em Tempo de Cinema (1967), destaca uma bela seqüência do filme, quando Carlos, no ápice de sua revolta, rouba um carro e foge de São Paulo. Deixa tudo para trás. Quer recomeçar. Deixar de ser apenas uma engrenagem na metrópole impiedosa. Mas ele é um impotente. E assim sendo, é tão fascista quanto o sistema que o incomoda e contra o qual quer vingar-se.

Com São Paulo S/A, Person nós dá, portanto, um dos mais lúcidos retratos da impossibilidade e fatalidade com a qual o homem está determinado a encarar. Assim como a morte (com a qual Hilda acelera o encontro) não há fuga certa para aqueles que viverão em sociedade competitiva.

Uma sociedade de anônimos, tocando a sua vida individual numa luta interna. Tendo de resolver as 50 obrigações diárias, trabalhando, trabalhando e trabalhando para aceitar que é preciso recomeçar 1.000 vezes. E nessa grande batalha, como uma ópera trágica, o grande vencedor é a própria cidade que anula o homem e o oprime até a loucura, mesmo que apenas momentânea.

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