White God
Sparta-dogs
Por Luiz Joaquim | 25.02.2016 (quinta-feira)
A primeira informação que nos é dada por White God (Fehér isten, Hun., 2015) – filme de Kornél Mundruczó que entra em cartaz hoje (23) no Cinema do Museu do Homem do Nordeste (Recife) – é a assertiva escrita na tela, em fonte branca sobre fundo preto, criada pelo poeta alemão Rainer Maria Rilke (1875-1926): “Tudo o que é terrível precisa do nosso amor”.
A ideia piedosa aqui sugerida martela a cabeça do espectador por toda a extensão de 121 minutos desse forte filme que saiu da Hungria e levou o prêmio máximo da mostra Un Certain Regard em Cannes 2014. Mas é lá para o cativante desfecho de White God que Mundruczó reserva a melhor tradução visual para sua epígrafe.
Ainda antes do título do filme refletir nos olhos da platéia, a produção húngara oferece também uma combinação hipnótica de imagens com uma frágil garota circulando sozinha de bicicleta por uma metrópole abandonada. Até que uma matilha com centenas de cães começa a persegui-la.
Apesar da (principalmente) beleza plástica e impactante que Mundruczó construiu aqui a partir de uma feliz combinação entre enquadramentos, sons, trilha sonora e, claro, de centenas de cachorros raivosos em disparada atrás de uma menina indefesa, apesar disso tudo, esta não é necessariamente a sequência mais perturbadora do filme.
Seria difícil, na verdade, elegê-la.
A grandeza de White God está em sua capacidade de funcionar pelo menos em três níveis de alcance com seus espectadores.
Num primeiro – aquele que está na superfície -, temos a empatia imediata pelo cão protagonista Hagen, criado pela solitária pré-adolescente Lili (Zsófia Psotta) que se vê obrigada a viver três meses com o pai, com quem tem pouco contato, enquanto sua mãe e padrasto viajam até a Austrália.
Aqui, o amor incondicional de Lili por Hagen é inversamente proporcional ao relacionamento frio e distante que mantém a força com o pai. Hagen, por sua vez, nos é mostrado como a melhor representação da máxima “o melhor amigo do homem”.
A simbiose amorosa estabelecida entre Lili e Hagen tem ainda mais um elemento lúdico incorporado pela música que a menina aprende no trompete para tocar Tannhäuser, de Wagner. Uma melodia que irá permear a união, separação e reconciliação dessa história de amor.
Até aí espectadores amorosos com bichinhos de estimação terão a comoção garantida durante a sessão. Mas a partir da separação de Lili e Hagen, o terror se instala e é provável que estes mesmo espectadores não consigam suportar o que White God trará a seguir.
O segundo nível de alcance do filme diz respeito à inteligência cinematográfica desta obra de Mundruczó. Antes uma observação. Aqui temos como protagonista aqui cachorro. E quem viu A Noite Americana(1973), de Truffaut, sabe muito bem o que significa trabalhar com animais.
Nesse ponto, o filme húngaro impressiona (um) pelas incríveis circunstâncias dramatúrgicas que consegue forjar a partir da “interpretação” de Hagen, seja sozinho estranhando o mundo hostil onde foi jogado, seja com seu pequeno amigo vira-lata que encontra num açougue, ou ainda liderando um bando de cães bárbaros; e (dois) pela audácia e aproveitamento competente de estratégia próprias da linguagem do cinema para criar uma atmosfera de horror e puro suspense.
Chegamos ao terceiro nível de alcance, este mais sofisticado uma vez que cria vetores apontando para questões sociais, humanas.
O ponto sensível que empurra Hagen (alternado em cena por dois cachorros-atores) para a rua, levando-o ao inferno dos cães e a sua conseqüência insurreição – como uma espécie de Spartacus canino – reside no fato dele ser mestiço.
Para quem conseguir enxergar, há nessa parábola social, uma forte carga de dolorosa realidade preconceituosa pela qual, nos lembra Rilke lá na abertura, poderá ser resolvida com nosso verdadeiro amor, se nos colocarmos na mesma posição das vítimas.
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