Entrevista: Anna Muylaert e Laerte
Anna: “Acredito mais nas pessoas que nos rótulos”.
Por Luiz Joaquim | 21.07.2016 (quinta-feira)
Fotos: Aline Arruda/Divulgação
SAO PAULO (SP) – O segundo movimento deste 11o Festival de Cinema Latino-americano de São Paulo, aconteceu na manhã de hoje (21), reunindo no Memorial da América Latina a realizadora Anna Muylaert e a quadrinista Laerte para uma bate-papo sobre (e a partir do filme) Mãe só há uma, exibido na abertura do evento ontem à noite, na área externa do Memorial, sob uma temperatura de 13 graus Celsius.
Por ocasião da exibição, o apresentador Cunha Jr., cerimonialista do festival, brincou dizendo que “a prova de que o amor da platéia ao cinema era maior que o frio” estava no tamanho daquele público, que reuniu, talvez, algo próximo a 2.200 pessoas.
Anna, à vontade, dedicou à sessão às meninas estudantes de cinema e depois puxou um “Fora Temer!”, com o qual foi acompanhado por uma parte da plateia paulistana.
LAERTE & MUYLAERT
Na manhã de hoje, durante a conversa, Anna iniciou respondendo a pergunta que todos lhe fazem: “Por que escolheu a mesma atriz [Daniela Nefussi] para interpretar a mãe?”
“Porque para a criança a mãe é aquela maravilha, pra adolescente não é. É a mesma pessoa, com a mesma cara, mas não tem mais o mesmo sentimento. Digo isso para a maioria dos casos, mas deve ter alguém, não conheço, que ache a mãe sempre uma eterna maravilha”, respondeu.
Sobre a importância do filme para o jovem que passa pelo processo de aceitação, Laerte diz que uma virtude do filme é que ele não é uma obra sobre transgeneridade, não é um filme sobre roube de criança. Essas questões fazem parte da história, que tem uma densidade própria. Você é capaz de reconhecer uma verdade temática que vai alem dessas questões. E o público se sente gratificado, seja transgênero ou não. O que se dá ali são realidades simbólicas que atingem a todo mundo”.
Anna: “No filme a gente ta falando de transgeneridade mas podia ser outra coisa. O fato de o Pierre ter perdido tudo, mãe, família, nome, fica mais fácil para ele se mostrar quem ele quer ser. Já perdeu tudo mesmo. E acho que na vida a gente às vezes fica medindo as coisas. ‘Ai, acho que não vou fazer isso para não acontecer aquilo’. ‘Acho que não vou usar essa roupa porque vão falar’, e etc”.
Laerte lembra que a cena no filme que mais gosta é do conflito no boliche. “Mas por questões profissionais, por ela funcionar quase como a lógica de um quadrinho, me chama muito a atenção. É aquela em que o Joca é rejeitado por uma menina e logo depois ele dá o troco em outra”.
Anna conta da cena do loja de roupa como a sua preferida, mas destaca um corte (mais que um cena) que se orgulha. “Quando teríamos o auge do drama, com Pierre encontrando os pais, cortamos para Joca ao telefone e depois ele já encontra a mesa com todos lá. Aí o espectador fica perdido, igual aqueles na mesa. Essa é uma opção do filme, cortar toda a melodramaticidade”.
NAOMI NERO
Sobre a escolha do Naomi Nero para o protagonismo, a diretora conta que fez testes – “não temos profissionais adolescentes” – e o encontrou , com aquele corpo longilíneo, com nome de mulher. Já Laerte disse que pela primeira vez que viu Naomi pensou consigo “esse menino é a cara de uma trans que conheço”. E depois veio a saber que Naomi era o irmão dessa trans.
“Na vida real é como se o Naomi fosse o Joca do filme”, diz Anna. “Ele tomou informações com a irmã e essa era uma questão natural em sua vida”, complementou e, aproveitando, contou uma historinha de bastidor: “A namorada do Naomi também se chama Naomi. Eles se conheceram num chat virtual, e ela começou a teclar com ele porque achava que era outra mulher. Daí começaram um papo de amigas e quando se conheceram, ficaram juntos”.
Sobre a câmera livre, na mão em Mãe só há uma, a cineasta conta que nunca havia experimentado essa estética, casou com o baixo orçamento do filme (R$ 1,2 milhão) e porque também “um filme com close é mais sensual. Chega na pele, chega no corpo, na bunda”, diz a cineasta. “E tem a ver com a idade do personagem”.
CROSS-DRESSING
Nesse ponto, Anna aproveita o encontro e pergunta a Laerte o que ela acha dessa classificação de cross-dressing [termo associados a pessoas que usam roupas do sexo oposto].
E Laerte: “É uma palavra criada e trazida do EUA para separar um parte da população dos travestis. O travesti, também nos EUA, é visto como alguém ligado à prostituição, assim como aqui. O que lá nos EUA tinha como justificativa na área da orientação sexual era um discurso dizendo ‘ah, não somos viados que estamos dando por dinheiro, somos heteros que gostamos de nos vestir de mulher. Então o termo veio para criar esse contexto”.
E continua: “Agora, tem também um sentido de classe social, né? Pra dizer, olha nos somos finas. Não somos travestis. Só que com o tempo a coisa está se estabelecendo mais como algo que a gente se ‘monta’ e se ‘desmonta’, mantendo também sua existência social masculina. É mais ou menos isso, mas também não são definições científicas”. E concluiu: “A experiência da transgeneridade é algo muito maior que o fetiche por usar uma calcinha ou um sapato feminino”.
Sobre os próximos projetos, Anna adiantou que vai parar em setembro para umas férias, para ficar próximo da natureza e escutar a si mesma, mas já começou a rascunhar uma história sobre machismo para o próximo filme. Deverá ser sobre a “desnaturalização dessas pequenas agressões que a gente sofre diariamente e às vezes a gente nem as percebe”.
*Viagem a convite do festival.
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