Café Society
Allen mostra como a vida pode ser boa, mesmo sem ser plena.
Por Luiz Joaquim | 25.08.2016 (quinta-feira)
É como um lugar aconchegante, para onde retornamos anualmente. Este “lugar” está de volta a partir de hoje nos cinemas do Brasil e ele se chama “um filme de Woody Allen”. Nem sempre “esse lugar” reaparece tão confortável, mas em Café society (Cafe society, EUA, 2016) o que encontramos é aquele espaço dos sonhos, de onde nunca queremos mais sair.
A situação é tal qual aquela que acontece na abertura de Sonhos de um sedutor (1973), quando as luzes acendem numa sala de cinema ao final de Casablanca (1942) e Allan (Allen) não quer voltar a realidade lá fora.
Talvez o grande desafio ao escrever um texto a cada novo filme de Woody Allen esteja em não fazer ilações com sua extensa obra, da prolífera carreira, na qual ele sempre injeta muito da sua maneira de enxergar (e fazer graça com) o mundo.
É difícil porque sua assinatura já está lá, a cada nova obra, desde a abertura – com os créditos escritos com a fonte branca e simples (qual será aquela fonte?), sobre um fundo preto –, identificando sem glamour sua equipe, enquanto toca ao fundo uma música com provável 80 anos de existência, criada por uma daquelas fantásticas jazz bands nova-iorquinas.
É desde aí que o aconchego toma corpo.
Em Café society, já adiantando a principal razão contida em seu discurso, o que Allen nos dá é um recorte não triste, mas melancólico na vida de um casal.
Mais em particular na de um rapaz, que ao final, mesmo repleto de conquistas, e ainda que a felicidade dessas conquistas lhe sorriam, o peso de uma ausência se faz presente suscitando uma outra felicidade que ele nunca conhecerá.
E essa constatação não nós é apresentando de forma lamuriosa. Mas apenas como uma constatação. Própria de quem chegou a uma maturidade da qual poucos gozam nessa vida.
Esse rapaz é Bobby (Jesse Eisenberg) – o alter-ego de Allen da vez -, um jovem nova-iorquino que nos anos 1930 decide deixar a família judia formada pelo pai, a mãe, um irmão mais velho envolvido com gângsteres, e a irmã também mais velha, que é casada com um filósofo.
Uma das belezas aqui – e em seus outros filmes, claro – está no fato de que todos estes personagens possuem vida, possuem falas e energia própria para o enredo (ou apenas para transmitir um recado que Allen quer nos passar). O que os coloca num espaço mais privilegiado do que apenas servirem de “escada” para o protagonista.
Não é o por menos que vemos talentos como Sheryl Lee, Parker Posey, Paul Schneider e Blake Lively (também em Águas rasas) atuando como coadjuvantes neste Allen, ao redor do protagonista Bobby.
Bobby muda-se para Hollywood com o sonho de tornar-se roteirista. Busca ajuda com o tio Phil (Steve Carrell), um influente agente de grande estrelas que o emprega e lhe apresenta a secretária Vonnie (Kristen Stewart).
Fulminado de paixão por Vonnie desde a primeira vez que a vê, Bobby tenta conquistá-la, mas sempre respeitando um detalhe fundamental. Vonnie tem um namorado.
Com maestria para construir histórias complexas e envolventes, Allen usa em Café society um recurso que não usava desde 1987, quando rodou A era do rádio. Ele narra o filme sem aparecer na tela atuando.
A sua fala que escutamos (numa voz já frágil de um senhor com os 80 anos que possui) funciona como que anunciado em síntese a intensidade dos sentimentos internos de Bobby.
Talvez o grande equilíbrio que se vê na roteiro construído para Café society esteja mesmo no fato de que Allen não vilaniza ninguém. Até mesmo o irritante vizinho da irmã de Bobby é defendido pelo seu marido.
Já seu irmão gângster, Ben (Corey Stoll), ao final tenta buscar a redenção se convertendo ao catolicismo – ainda que por razões malandras – para o desespero de sua mãe judia: “Primeiro gângster, depois católico! O que mais me falta acontecer?”.
Entre tantos trunfos aqui, mas já saindo da tocante história criada por Allen, está a participação de Kristen Stewart que sela de vez seu passaporte para a terra das boas atrizes. A garota que ficou famosa no cinema como a insossa namorado de um vampiro bonzinho atua aqui com a precisão necessária para compor a Vonnie que tira Bobby do chão.
Num misto de simplicidade, elegância e coerência, uma Vonnie mal vivida na tela poderia por todo Café society a perder.
É o que poderia ter acontecido se a primeira opção de Juliet Taylor, a eterna responsável pela seleção de elenco dos filmes de Allen, tivesse permanecido com sua primeira opção para interpretar Phil, no caso, o ator Bruce Willis. Sabe-se que Allen desistiu de Willis pelo seu comportamento no set e pela sua dificuldade em memorizar os diálogos do roteiro.
Voltando a Kristen Stewart, ela ganhou uma moldura de beleza aqui como não se via há muito tempo no cinema. A fotografia doce, mas na dose certa do açúcar, de Vittorio Storaro (o homem por trás de O último tango em Paris 1972; O último imperador 1987; e Apocalypse Now, 1979; entre outros) criou closes para Stewart com os mesmos filtros que Hollywood empregava em suas grandes estrelas nos anos 1930 e 1940 – período em que se passa o enredo.
O efeito da fotografia dá asas a ideia de que se Café society fosse finalizado em P&B proporcionaria um resultado ainda mais nostálgico. Um resultado que talvez Allen tenha querido evitar, infelizmente.
A propósito, este é o primeiro filme que o nova-iorquino trabalhou com uma câmera digital, usando uma Sony, a CineAlta F65. É também o primeiro filme num formato mais largo (com proporção 2,00:1) desde Manhattan (1979 / 2,35:1), quando penou para fazer de cada fotograma daquele filme uma obra de arte, e que depois o levou a anunciar que nunca retornaria à tela larga.
Parece que só mesmo Vittorio Storato para fazê-lo mudar de ideia.
Obrigado Sr. Sttorato. Obrigado Sr. Allen.
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