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Críticas

Últimos Dias no Deserto

Jesus, o diabo e a incomunicabilidade do pai com seu filho

Por Luiz Joaquim | 13.09.2016 (terça-feira)

A cultura do chamado circuito “Sessão de Arte”, que chegou no Recife nos anos 1990 nos extintos cinemas “Recife 1, 2, 3”, do Grupo Severiano Ribeiro, vem funcionando com o nome “Cinema de Arte” desde março de 2015 no complexo mexicano Cinépolis, no Shopping Guararapes, em Jaboatão dos Guararapes (PE).

Ainda que seja bom para o jaboatonense ter um espaço em que ele possa respirar o oxigênio de uma cinematografia mais desafiadora em seu município, a lógica do tal “circuito” é um tanto limitadora, uma vez que sua programação prevê apenas uma sessão por dia. No sábado e domingo em torno das 14h, e nas quintas e sextas-feiras, além de segunda a quarta-feira, por volta das 19h30.

Com sorte os filmes permanecem em cartaz por duas semanas, o que solicita do espectador que realmente deseja ver alguma produção específica dessa programação uma boa organização de sua agenda.

Dessa forma, alguns tesouros exibidos ali passam batidos pelo público do Grande Recife simplesmente por essa circunstância de programação. É o caso da atual obra em cartaz, Últimos dias no deserto (Last days in the desert, EUA, 2015), do colombiano Rodrigo Garcia.

 

GARCIA – Quando surgiu em 2000 com Coisas que você pode dizer só de olhar para ela, Rodrigo, coitado tinha como maior referência o peso do nome de seu pai. Ninguém menos que Gabriel García Marquéz (1927-2014).

Mas era só dar uma olhada no seu filme debut para perceber o quão intrigante poderia ser sua carreira como cineasta. Os festivais também entenderam isso. Tanto que o então jovem realizador saiu premiado de Sundance e de Cannes, na mostra Un certain regard.

No filme de estreia, trazia no elenco os nomes de Glenn Close, Holly Hunter, Cameron Diaz, e Valeria Golino, entre outras, para contar pequenas histórias densas sobre o universo de cinco mulheres.

Desse ponto de partida Rodrigo Garcia faria a trilha de sua carreira. Entenda essa trilha como o universo feminino e suas mais profundas peculiaridades. O cineasta passou a nos presentear com pequenos contos isolados, com sutilezas e ótimas personagens fictícias, apresentando questões universais e muito caras à mulher.

Logo na sequência nos deu o excelente, e inédito no Brasil, Ten tiny love stories (2002), com um roteiro criativo que é um grande presente para qualquer atriz. As ‘dez historinhas de amor’ do título original são dez monólogos contados por dez mulheres, cada uma na sua vez e sozinha, olhando para a câmera enquanto falam de algum homem que foi importante na vida delas. Algumas histórias são doces, outras sexy, e ainda há as dolorosas.

Veio depois, Questão de vida (2005), mais uma vez investigando a resignação e persistência na vida de nove mulheres (o que lhe rendeu quatro prêmios no Festival de Locarno, incluindo um para todo o elenco feminino do filme), e o oscarizável  Albert Nobs (2011) – concorreu a três deles, sendo um para atriz, Glenn Close, e outro para atriz coadjuvante, Janet McTeer. Aqui não são várias mulheres em questão, mas uma particular, no caso a mordomo que dá título ao filme e se vestiu por 30 anos como homem na Irlanda do século 19.

Depois de bastante dedicação à produção para a tevê, Garcia volta agora a nos presentear com um novo trabalho para o cinema. Desta vez, com Últimos dias no deserto, o realizar passa longe da ideia do feminino (embora dê uma piscadela em um momento ou outro do enredo) e passa a concentrar-se na fé e na paternidade.

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Rodrigo Garcia (de jeans) no set de Últimos dias no deserto

DESERTO – É curioso que este Últimos dias no deserto e sua temática venham à luz como o primeiro filme de Rodrigo após a morte do velho Gabo.

Pela sinopse com a qual o filme se vende talvez o espectador se confunda por achar que ali irá encontrar mais um filme bíblico no mais fiel aspecto de sua implicância religiosa conforme prega o Livro Sagrado.

Não é para menos, pois o que se promete no pequeno resumo da produção é que veremos a história de Jesus Cristo (Ewan McGregor) em jejum no deserto, onde encontrará o diabo (Ewan McGregor) para por em provação sua busca pela fé.

Não diz, entretanto, que o grande desafio de Cristo nesta história criada pelo roteiro original do próprio Garcia é conseguir pôr em harmonia uma trincada família formada por um velho pai com sua mulher enferma e seu jovem filho infeliz.

Pelo desejo do pai e contra a vontade do filho, a família vive num ambiente desértico, árido e inóspito que define muito da atmosfera que Últimos dias… vai infligir ao espectador.

Com uma trilha sonora discreta, quase inexistente, é o silêncio que pesa aqui na paisagem de um vazio infinito.

E em meio a tantas sugestões na história de uma relação sagrada, concentrado em alta dosagem no mais sensível núcleo social, a família (aqui absolutamente isolada) – sem falar do conflito de um Cristo em formação e seu Pai que não lhe responde – Últimos dias no deserto é de uma sutileza e economia tocantes ao dar o seu recado.

Garcia deixa para a última cena, minúscula, a revelação de um efeito que vai elevar ainda mais a força do que foi registrado no que vimos ao longo do 100 minutos do filme.

O sagrado, enfim, não está no objeto, mas na perspectiva de quem olha para ele.

Um parágrafo para McGregor – o ator escocês ganhou um presente aqui, que soube louvar. Não apenas por interpretar o personagem de Jesus Cristo, mas por ser obrigado a “contracenar” consigo mesmo sendo ele também o diabo, em diálogos tentadores que dão claramente o tamanho do ator que é McGregor.

Últimos dias no deserto está e continua em cartaz no Cinépolis (Jaboatão dos Guararapes – PE) até quarta-feira (21/09).

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