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Clássicos

sexo, mentiras e videotape

Nem tanto sexo, muita mentira e bastante videotape (Texto escrito no 1º sem. de 1998 e nunca publicado).

Por Luiz Joaquim | 03.03.2017 (sexta-feira)

No 28 de maio de 2017 o editor deste CinemaEscrito completa 20 anos de atividades na crítica cinematográfica.

O texto abaixo, que trazemos a público pela primeira vez, foi escrito ainda no tempo de sua formação como jornalista.

Texto escrito no primeiro semestre de 1998.

sexo, mentiras e videotape, de Steven Soderbergh (1989)

No final dos anos 1980 um novo brinquedo estava sendo colocado no mercado comercial, e se tornava popular entre a classe média. Eram as Handcam ou câmeras de mão. Aparelhos eletrônicos portáteis que permitem gravar imagens caseiras sem a necessidade de um apurado senso técnico.

Como qualquer novidade, não se conhecia o potencial iminente do equipamento. Entretanto, o então jovem diretor norte-americano curtas-metragens Steven Soderbergh conseguiu ver um sentido além do óbvio para as câmeras portáteis.

Em sexo, mentiras e videotape, seu primeiro longa-metragem, ele depositou um valor inusitado para o aparalho. Depositou-lhe o valor de um confessionário eletrônico. Além de Graham (James Spader), Ann Bishop Malleny (Andie MacDowell), John (Peter Gallagher) e Cyntia (Laura Sangiacomo), Soderbergh fez da máquina um quinto e indispensável personagem em seu filme.

Tudo começa quando Graham chega na cidade de John, seu amigo que não encontrava há nove anos, e este lhe dá abrigo até que ache um lugar para ficar. Nesse meio tempo, John transa com a cunhada, Cynthia, enquanto sua esposa, Ann, ajuda Graham a encontrar um apartamento.

Embora fossem muito amigos na adolescência, Graham e John são extremos opostos na vida adulta. Basta mencionar que Graham, por princípios, não mente, e que John é um advogado.  Embora não tenha a intenção de provocar nada, a chegada do andarilho causa uma mudança radical na vida dos outros personagens. Com seu jeito inibido e humilde, Graham chama, principalmente, a atenção de Ann. Uma esposa vegetando uma vida falsa, que se sente muito mais abalada pelas poucas e precisas palavras de Graham do que com as de seu analista.

Em Cannes, 1989, o filme de Soderbergh ganhou a Palma de Ouro por melhor filme, levou o prêmio da crítica internacional e James Spader levou o seu troféu pela melhor atuação. No Oscar, sexo, mentiras e videotape foi indicado como roteiro original. Para que se tenha ideia da versatilidade do roteiro dessa obra de arte, basta tentar imaginar o diálogo para a seguinte circunstância: uma estranha chega na casa de um homem, que ela nunca viu, sem nenhum motivo aparente e, minutos depois, ela se masturba para a filmadora desse estranho. Consegue imaginar como a conversa entre os dois foi conduzida para que isso acontecesse? Veja o filme.

Talvez (afinal, nada é absoluto), este tenha sido o filme que melhor representou o relacionamento entre os casais nos anos 1980. John é mostrado como o yuppe escroque que só pensa em se dar bem sem medir, ou respeitar, absolutamente nada além de seus desejos. Ann é a esposa cega pelo conforto aparente, que se contenta com migalhas do marido sem questionar se é feliz ou não. Vive numa eterna insatisfação sem nem saber o motivo. Cynthia é independente. Diferente da irmã, ela não tem vínculo com nada, mas sabe discernir o certo do errado. Faz o que tem vontade, e se orienta pelo bom senso. E, finalmente, temos Graham.

Um parágrafo para Graham.

A complexidade desse personagem não permite uma análise muito precisa. Propositadamente, não fica muito bem explicado o que lhe aconteceu no passado para que se tornasse o que é. Ele tem como “projeto pessoal” gravar imagens de mulheres depondo sobre suas experiências sexuais. A dificuldade de Graham em manter uma relação amorosa normal o tornou um cético que abdicou de toda e qualquer forma de hipocrisia para atrair mulheres. Graham não falseia nem joga. Ele é honesto. Sua insistência na verdade acaba atraindo vítimas da mentira (Ann e Cynthia) e afastando quem vive dela (John).

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Em determinado momento na trama de sexo, mentiras e videotape (o que menos se vê no filme é sexo), a mini câmera de Graham torna-se uma espécie de filtro. Ela é a única maneira pela qual algumas verdades são reveladas. A genialidade de Soderbergh não parou aí. Ele conseguiu se apropriar da linguagem para dar algo novo, fresco, no qual cinema interage com o vídeo e desloca os dois tempos, o do filme e o gravado na câmera, para depois fundi-lo num só, a ponto de confundir (alguém pode dizer “encantar”) o espectador.

Apenas sete anos depois, tivemos a experiência de ver uma câmera de vídeo sendo usada de forma tão impressionante e determinante num filme. Era um outro diretor norte-americano independente. Seu nome: Gary Walkon, e ele dirigiu Notas do subterrâneo (baseado na obra de Dostoievski) sugando da handcam o mesmo que Soderbergh sugou. Mas isso é outra história (muito boa por sinal).

Quanto a sexo, mentiras e videotape, não há pessoa sensata que o descarte como referência marcante na história do cinema. Havia escolas que seguiam uma linha de estilo nas décadas de 1940, 1950, 1960, difícil dizer que algo semelhante tenha acontecido nos 1980. Entretanto, o melhor filme de Cannes do último ano daquela década conseguiu traduzir, e com muito estilo, o que se tentou falar em dez anos.

Abaixo, filme sexo, mentiras e videotape completo

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