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Five Came Back (2017)

Como mestres do cinema ajudaram o mundo na Segunda Guerra e tornaram-se cineastas ainda melhores

Por Luiz Joaquim | 27.04.2017 (quinta-feira)

“Há bondade no mundo”, diz a voz de Frank Capra (1897-1991) em off ao final de Five came back (EUA, 2017), série original da Netflix disponibilizada desde 31 de março, em três capítulos, com cerca de 50 minutos cada um.

É uma afirmação dita pelo homem que deu ao mundo A felicidade não se compra (1946). Filme que estabeleceu um ritual feito por famílias do mundo inteiro. O de assisti-lo anualmente quando se aproxima o período do Natal para tentar entender o sentido da vida.

Mas é também a voz do mesmo homem que dedicou sua sabedoria cinematográfica para criar propagandas e outros registros de cinema a serviço da força militar norte-americana durante o período da Segunda Guerra Mundial. Tendo essa experiência sido determinante para o que Capra imprimiu em A felicidade… em termos do valor de uma vida e da importância de servirmos aos semelhantes. De, basicamente, nos ajudarmos.

Junto a Capra no exercício de servir a país contra o Nazismo, estavam os não menos talentosos John Ford (1894-1973), William Wyler (1902-1981), John Huston (1906-1987) e George Stevens (1904-1975).

É sobre o processo de ingresso nesse serviço, sobre as missões assumidas, sobre as obras realizadas durante a Guerra, sobre o impacto dessas obras, e sobre o retorno ao mundo de plástico de Hollywood, após todos terem testemunhado o horror real, que trata Five came back – título homônimo a uma produção ‘B’ hollywoodiana feita em 1939 por John Farrow, conhecida por dar origem ao gênero do ‘filme-catástrofe’.

Todos os cinco, igualmente, retornaram ao fim da Guerra transformados após traumáticas e particulares experiências. E a série joga luz sobre como esse impacto foi definitivo para torna-los cineastas ainda mais refinados.

Tal aspecto é mais profundamente apresentado no terceiro episódio – The price of victory – sendo a obra de George Stevens talvez a mais emblemática nesse sentido, uma vez que ele  antes de embarcar para a Europa, deixando para trás esposa e filho pequeno de três anos, deixava também para trás a promissora carreira como excelente diretor de comédia que vinha construindo (vejam Gunga Din, 1938 e a A mulher do dia, 1942).

Ao retornar, apesar das tentativas, não conseguiu mais criar humor pelo cinema, mas passou a criar pérolas dramáticas que também se tornaram emblemas do cinema mundial (Os brutos também amam¸ 1953; Assim caminha a humanidade, 1956, só para ficarmos em dois).

Produzido majoritariamente por Steven Spielberg, via Amblin Television, Five came back cuida com muito esmero de um material de arquivo raro, tendo quase sua totalidade feita pela equipe dos cincos cineastas durante a Guerra, intercalando históricas entrevistas com os mesmos e outras atuais, registradas com Francis Ford Coppola, Lawrence Kasdan, Guilermo del Toro, Paul Greengrass e o próprio Spielberg trazendo curiosidade sobre aquele período. Sendo tudo amarrado pela narração de Meryl Streep.

NEW YORK, NY - MARCH 27: (L-R) Laurent Bouzereau, Lawrence Kasdan, Steven Spielberg, and Guillermo del Toro attend the "Five Came Back" world premiere at Alice Tully Hall at Lincoln Center on March 27, 2017 in New York City. (Photo by Mike Coppola/Getty Images)

Kasdan, Spielberg e Del Toro

O episódio #1, The mission begins, contempla a origem da ideia das forças armadas americanas em convocar esses cineastas com o objetivo de, com a produção de documentários e propagandas, estimular seus soldados na causa da Guerra e fazer aqueles que ficaram na América acreditarem que a luta era necessária.

Apresenta também o perfil e a altura em que estava a carreira de cada um dos cinco realizadores. E desenha, ainda, suas personalidades a partir de seus trabalhos, sendo Wyler e Capra mais interessados no que há de humano nas histórias que contavam.

Em Combat zone, o episódio #2, uma observação já aponta a preocupação que Hollywood precisava tomar em suas produções a partir da experiência de Wyler ao dirigir Rosa de esperança¸ 1942, seu último filme antes de partir para a Guerra.

No enredo de Rosa…, o sofrimento de uma família britânica para sobreviver à Segunda Guerra. Nesse cenário, um soldado alemão é capturado e demonizado pelo filme. Executivos da MGM, ainda em 1941, antes do filme ser lançado, pediram a Wyler para minimizar o ódio contra a alemão demonstrado ali. Mas Wyler, judeu, se negou. Já sabia que do que se tratava as intenções do füher contra o seu povo. Até que, quando em dezembro de 1941 Peal Harbor foi atacada, a MGM concordou em manter a ideia original no filme Wyler.

Enquanto Ford (autoritário e vaidoso), Wyler (e posteriormente Stevens) embarcavam para a Europa, Huston foi designado a ir para a Ásia e Capra, na América, recebeu a difícil tarefa de criar uma série propagandista – Why we fight? – sobre o poderio militar americano.

Five-Came-Back5

Frank Capra (na direita)

Mas ao Capra ter acesso ao retumbante e impressionante Triunfo da vontade, 1935, de Lena Refenstal, colocou a mão na cabeça e pensou: “Deus, eu não tenho como superar isso!”. Até que teve a pioneira ideia de usar as próprias imagens criadas pelo departamento de propaganda nazista, só que apresentando-as resaltando as mogangas de Hitler e Mussolini em tom anedótico.

Já Huston só viria a conseguir impressionar quando foi designado a ir a São Pedro, na Itália e lá registrar de forma documental a vitória dos EUA sobre os alemães. A questão é que ao lá chegar, encontrou a cidade já normalizada e, sem muito pudor, encenou a batalha na cidade para registrar a ação nos moldes de um documentário. Spielberg revelou que só anos depois descobriu que aquele filme era encenado, e não um registro documental.

Wyler, por sua vez, sobrevoou o território alemão em aviões B17 – na equipe conhecida como Menphis Belle – para filmar os bombardeios. No seu caso, o risco de precisar pousar ou saltar de paraquedas naquele território seria fatal, sendo ele judeu. A missão foi um sucesso, assim como o filme feito por Wyler, que brigou contra seus superiores para manter nele o espírito da urgência captada em suas imagens.

Tal projeto, The Memphis Belle: A story of a flying fortress, 1944, foi lançado nos cinemas tornando-se o primeiro documentário produzido na Guerra a virar sucesso de bilheteria e ganhar críticas na capa do The new York times.

Em função desse sucesso Wyler foi designado a uma outra missão em outro tipo de aeronave e, por voar nela, num único voo, sem a devida proteção auricular, tornou-se definitivamente surdo. Ainda assim, ao voltar a Hollywood produziu A princesa e o plebeu, 1953; Ben-hur, 1959; Infâmia, 1961; O colecionador, 1965; e Funny Girl: A garota genial, 1968, entre outros.

George Stevens, que seguiu com o exército pela Europa até a libertação de judeus em campos de concentração – particularmente Dachaupróximo a Munique – , testemunhou o horror inimaginável desse ambiente, com pilhas de defuntos e moribundos desesperados.

Determinado a captar todas a imagens que encontrasse ali, não mais com o objetivo de fazer um filme propagandístico, seu objetivo pessoal passou a ser registrar a tudo como prova de um crime mundial.

Foram estas imagens que acabaram servindo a dois filmes – Nazi concentration camps e The nazi plan (ambos 1945) – que foram apresentados no julgamento de Nuremberg, dando a exata dimensão do holocausto e do premeditado crime nazista contra a humanidade, e não permitindo assim que os oficiais alemães tivessem uma pena mais leve pela acusação original de crime de guerra.

Coube a John Huston fazer Let there be light, um dos últimos filmes do tema pelo qual ele acompanha soldados com traumas pós-guerra sendo tratados em hospitais. O filme foi proibido pelo governo norte-americano de circular. “Não era interessante mostrar o efeito que uma guerra provocava nos nossos heróis”, contextualiza Spielberg em seu depoimento.

Só no início dos anos 1980, Huston conseguiu sua liberação. E só pelos trechos que Five came back apresenta de Let there be light, trata-se e uma obra-prima da qual Paul Greengrass relata: “foi ali que compreendi a grandeza da alma de Huston”.

A produção Five came back (dirigida por Laurent Bouzereau, responsável pelos making of dos filmes de Spielberg) passa, de certa maneira, a ideia de que se trata de um capricho do diretor de Tubarão e 1941: Uma guerra muita louca.

É Spielberg, esse menino crescido, apaixonado por cinema, aviões e a Segunda Guerra Mundial; e que, de posse de um material de arquivo tão rico, resolveu recontar esse pedaço da história do cinema americano tão peculiar, sofrido e importante.

Nós agradecemos.

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