Notas do Subterrâneo
Os subterrâneos de Dostoievski: Obra adaptada do russo em cartaz no Ribeira (texto publicado em 1997).
Por Luiz Joaquim | 22.05.2017 (segunda-feira)
*Publicado na editoria Caderno C, pag. 6, do Jornal do Commercio (Recife) dia 28 de maio de 1997, quarta-feira.
Um clássico em exibição no Cine Ribeira/Centro de Convenções. Clássico no mais puro valor da palavra, isto é, embora, paradoxalmente, seja contemporâneo, não pertence a nenhuma época ou lugar. É atemporal e universal. O filme em questão é Notas do subterrâneo e fica em cartaz de hoje até domingo. Para quem gosta de cinema e literatura, é um programa obrigatório.
Trata-se de uma produção alternativa americana dirigida por Gary Walkow. Deve-se destacar que o roteiro foi adaptado da obra do mestre russo Dostoievski, mas não se pode deixar de comentar o quão bem tratada foi essa adaptação para os nossos dias a ponto de torná-la tão realista que dói por sabermos sê-la possível.
No filme, somos colocados como testemunhas da vida de um homem comum. De um homem que pode ser nosso vizinho, pode ser eu… ou você. No caso, o personagem, vivido por Henry Czerny (de Jenipapo, de Monique Gardenberg), é um simples funcionário da prefeitura, com um trabalho enfadonho, como o de milhões que vivem neste planeta.
Ele vive só e seu maior prazer na vida, o único, são os livros. É assim que ele percebe o mundo. O que não sabe é que, para entender o mundo real, precisa entrar nesse universo e conviver com os outros que nele habitam. O universo dos livros não é suficiente.
Ele tenta participar do mundo real quando procura antigos “amigos” (que o desprezam) querendo compartilhar diversão, e fica evidenciada sua incapacidade de socialização. Através de um esforço, que vai além da sua disposição, ele consegue participar de um jantar combinado por esses “amigos” que, diferentemente dele, alcançaram sucesso na vida profissional.
Como consequência desse jantar, ele vai conhecer uma prostituta (interpretada por Sheryl Lee, atriz do Twin peaks e Os 5 rapazes de Liverpool). Ela vai servir, inicialmente, para que ele revele sua tendência à superioridade, dando-lhe conselhos moralistas, sentindo-se enojado por ela (apesar de tê-la possuído), e destacando o quão patético é o que ela faz para viver.
Finalmente ele sente o “prazer” do “poder” sobre outra pessoa e pode praticar sua superioridade intelectual com alguém. Oferece-lhe, então, ajuda. O que acontece, porém, é que ela, com sua simplicidade, é quem o ajudará. É ela quem o tornará humano.
Com o tema central na solidão, Dostoievski explica, na sua espirituosa estória, que de nada vale atingir o maior grau de inteligibilidade se o homem não consegue compartilhá-la. A consequência do descumprimento desse aviso é a solidão. O ostracismo a uma vida subterrânea.
Quem quiser entender um pouco melhor o conturbado espírito humano e rir do refinado humor do protagonista do filme (graças a seu nível intelectual que o faz questionar todas as suas atitudes) não pode deixar de verificar Dostoievski cinematografado por Gary Walkow.
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Texto original, escrito em 22 de maio de 1997
São poucos os filmes, atuais, produzidos que se tornam clássicos. Clássico no mais puro valor da palavra, ou seja, embora, paradoxalmente, seja contemporâneo, não pertença à nenhuma época. São atemporais. Finalmente está chegando ao Recife, via Celso Marconi no cine Ribeira do Centro de Convenções de Pernambuco, uma obra de arte cinematográfica, de produção alternativa americana, mas que é, incontestavelmente, universal.
Trata-se de notas do subterrâneo, do diretor Gary Walkow. Deve-se destacar que o roteiro foi adaptado da obra do mestre russo das letras Dostoievski, mas, não se pode deixar de comentar o quão primorosa foi essa adaptação para os nossos dias, impondo ao filme um caráter tão realístico que dói por sabermos sê-lo possível.
No filme, somos colocados como testemunhas da vida de um homem comum. De um homem que pode ser nosso vizinho, pode ser eu, ou você, fiel leitor. No caso, o personagem, vivido pelo ótimo Henry Czerny (conhecido, aqui no Brasil, pelo excelente filme brasileiro, Jenipapo), é um simples funcionário da prefeitura, no departamento responsável pela conferência dos projetos de construção civil a serem implantados no município. Em síntese, seu trabalho é enfadonho, como o de milhões que vivem nesse planeta.
Ele vive só.
Mora num apertado quarto-sala com banheiro, junto a um jovem vizinho barulhento. Seu maior prazer na vida, talvez o único, são os livros. É através deles que o nosso personagem percebe o mundo.
O problema é que: para perceber e entender o mundo em que vivemos é preciso entrar nesse universo, e conviver com os outros que nele habitam. O universo dos livros não é suficiente.
Nosso amigo não possui habilidade para lidar com as pessoas no mundo real e, por esse motivo, passa, no filme, por um\ situação que foge do seu domínio; do seu controle. Isso acontece quando ele procura antigos “amigos” (que o desprezam) querendo compartilhar diversão, e fica evidenciada sua incapacidade de socialização.
Através de um esforço, que vai além da sua disposição, ele consegue participar de um jantar combinado por esses “amigos” que, diferentemente dele, alcançaram sucesso na vida profissional. A vingança do personagem de Czerny é a condição de idiota a que submete aqueles “amigos” ricos. Pelo menos na sua imaginação. Para ele, não há vida inteligente nos outros .
Como consequência desse jantar do qual participa, ele vai conhecer uma mulher (docemente interpretada pela angelical Sheryl Lee – atriz de “Twin Peaks” e “Os 5 rapazes de Liverpool”). Seu personagem, uma prostituta, vai servir, inicialmente, mais uma vez para que o protagonista de notas… exponha sua incontrolada tendência de superioridade, dando-lhe conselhos moralistas e mostrando-se enojado por ela (apesar de tê-la possuído), além de destacar o quanto é patético o que ela faz para viver.
Ele sente como é o “prazer” do “poder” sobre outra pessoa. Através dela, ele pode, finalmente, praticar sua superioridade intelectual. Sim, pois ela é apenas uma prostituta sem valor. Oferece-lhe, então, ajuda.
A prostituta, entretanto, tem uma vida. Vida que, por sofrida, tornou-a sensível suficiente para perceber que o nosso amigo é acima de tudo uma pessoa boa. O que ele não quer admitir, entretanto, é que ela é quem o estará ajudando. Ela, com sua naturalidade e simplicidade, vai converter a concepção negativa que o protagonista do filme tinha, fazendo-o entender sobre a necessidade, presente nos homens, de partilhar as coisas da vida.
Ela o humanizará.
Assim começa o filme. O nosso amigo fala, através de uma câmera de vídeo, para nós (espectadores sentadinhos na sala de exibição do cinema), que comprou aquele equipamento para poder ter com “quem” (estamos falando de uma câmera de vídeo) relatar o que passou. Relatar o que aprendeu na sua vida subterrânea.
O seu tom é confessional. E no final do filme teremos uma surpresa reveladora.
Vejo, a rigor, o tema central do filme como sendo a solidão. Esse mal do século que nos atinge e transforma, certeiramente, mesmo estando cercados pelos mais modernos equipamentos de comunicação já inventados. Dostoievski explica, com sua espirituosa estória, que, de nada vale atingir o maior grau possível de inteligibilidade se essa criatura não consegue compartilhá-la. A consequência do descumprimento desse aviso é a solidão. O ostracismo a uma vida subterrânea, como a de milhares com quem convivemos.
Não é difícil perceber, nessa primorosa adaptação, detalhes que nos fazem lembrar de outro clássico moderno: sexo, mentiras e videotape, de Steven Soderbergh, Como também não é difícil olhar para esse filme e ver um Despedida em Las Vegas, de Mike Figgis, as avessas, ou, talvez, apenas mais sutil e contemplativo.
Mas, não se preocupe você, que pretende assistir ao filme de Gary Walkon, pensando que vai acompanhar uma estória deprimente. O que você vai encontrar é uma lição na vida de um homem, acompanhada por um humor bastante refinado. Sim, humor, graças ao nível intelectual do protagonista que questiona todos os seus pensamentos, provocando situações extremamente cômicas.
Se quiser aprender, entre 28 de maio e primeiro de junho, e entender um pouco melhor o conturbado espírito humano, é melhor ir verificar Dostoievski cinematografado em notas do subterrâneo, sendo exibido no cine Ribeira.
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