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Festivais

50. Brasília (2017) – noite 2

Discurso tenso marcou debate sobre “Vazante”, de Daniela Thomas, exibido em competição.

Por Julio Cavani | 17.09.2017 (domingo)

*Na foto acima, de Júnior Aragão, Daniela Thomas e equipe em debate na manha de hoje (17) sobre Vazante.

Dois longas-metragens que representam formas de fazer cinema totalmente diferentes entre si abriram a mostra competitiva do 50º Festival de Brasília na noite de ontem (sábado, 16). Vazante (SP), de Daniela Thomas, é uma luxuosa produção de época com uma clássica narrativa dramatizada e com direção de uma cineasta já consagrada. Música para quando as luzes se apagam (RS) é assinado pelo diretor estreante Ismael Caneppele, que busca construir uma linguagem própria e original, indefinida, anticonvencional em praticamente todos os aspectos técnicos e estéticos, com uma estrutura de realização artesanal e barata.

A programação, portanto, já se inicia equilibrada entre caminhos distintos dos cinemas brasileiros (no plural), mas ambos com buscas autorais igualmente desafiadoras. As trajetórias dos dois filmes também são incomparáveis, já que um já passou pelo Festival de Berlim e o outro começa agora uma promissora carreira.

VAZANTE – Daniela Thomas arrisca-se a contar uma história ambientada no século 19 em uma fazenda onde brancos e negros sofrem cotidianamente. A diferença entre os tipos de sofrimento e a maneira como a cineasta vai equilibrar (ou não) os pontos de vista tornam-se determinantes para as interpretações sobre Vazante. O elenco e a equipe por trás das câmeras transparecem toda uma aura de precisão, controle e cuidadoso esmero no fazer artístico, em um profundo processo de entrega.

Discursivamente, entretanto, o drama dos “sinhôs” e das “sinhás” parece ainda prevalecer, por mais que a intenção tenha sido investigar as raízes do Brasil situadas no ir e vir entre a Casa Grande e a Senzala. Esse posicionamento, que pode ser involuntário e ao mesmo tempo consciente, não deslegitima as intenções críticas (sobretudo em relação à condição das mulheres dos dois lados), mas deixa margem para complacências solidárias escorregadias, contraditórias e questionáveis. Em uma cena emblemática, por exemplo, a gravidade do suicídio de um negro é transmitida ao público por meio da tristeza sentida pela branca dona da propriedade.

Still de “Vazante”, divulgação

Na manhã de hoje (domingo, 17), em um debate histórico pela contundência, Daniela Thomas foi duramente questionada por parte da plateia (principalmente por negros e negras) por causa da maneira como os escravos do século 19 são representados no longa-metragem. “Seu filme está profundamente a serviço do status quo“, acusou o crítico Juliano Gomes. A diretora mostrou-se totalmente aberta e concordou com as críticas ao reconhecer que é uma branca “retrógrada”, privilegiada na construção de narrativas. “O filme é anacrônico”, reconheceu. Ela chegou ao ponto de dizer que, depois do que ouviu nesse debate, não teria feito Vazante.

MÚSICA PARA QUANDO AS LUZES SE APAGAM – Caneppele não parece estar interessado em peripécias, reviravoltas, desfechos e outras amarrações narrativas. Música para quando as luzes se apagam é um exercício ensaístico de retrato, diante de uma personagem que não pode ser compreendida com noções descritivas tradicionais: uma adolescente que transita entre a lesbianidade e a transexualidade em uma cidade do interior do Sul do Brasil. A câmera posiciona o espectador em uma condição de fantasma (ou de anjo da guarda), que observa os corpo de perto, mas sem ser percebido.

A protagonista é uma pessoa que mantém a doçura, o romantismo e a coragem mesmo que cercada por um contexto social com risco de iminente hostilidade. Falsamente precário, o estilo de imagem adotado acompanha esse sentimento ambíguo, com cenas em baixa definição contrastadas por suaves movimentos flutuantes. Em relação à identidade sexual, a construção discursiva nunca cai no vitimismo e, ao contrário, prefere o caminho do carinho, enfatizado pela presença de uma misteriosa mulher que desenvolve uma espécie de pesquisa afetiva sobre o cotidiano de Emelyn (nome da atriz e também da personagem).

* jornalista viajou a convite do Festival.

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