10. Janela (2017) – Gabriel e a Montanha
Segurança, técnica e sensibilidade para nos relembrar sobre o mundo em que vivemos.
Por Luiz Joaquim | 05.11.2017 (domingo)
É como um sopro de vida poder ver Gabriel e a montanha, de Fellipe Barbosa, em 2017. Um dos anos históricos e tristes da segunda metade desta década em que testemunhamos o Brasil e o mundo retroceder a passos largos em direção à intolerância étnica e à intransigência pautada por idéias ufanistas.
É certo que Barbosa, premiado em Cannes 2017 pelo seu Gabriel… na Semana da Critica (presidido por Kleber Mendonça Filho nesta edição), tinha consciência da beleza humanista a qual nos joga já no início deste filme que, dramaturgicamente, refaz os passos de seu amigo de infância, Gabriel Buchmann, falecido em 2009 nas redondezas do monte Mulanje, no Malauí (África), a poucos dias de voltar ao Rio de Janeiro.
Gabriel viajava pelo mundo há cerca de um ano antes de mudar para os EUA onde iria fazer seu doutorado em economia numa universidade de prestígio. Com auxílio dos talentosos João Pedro Zappa (como Gabriel) e Caroline Abras (como sua namorada Chris), Barbosa, aqui num só movimento, homenageia o amigo de infância, com quem estudou no carioca Colégio São Bento e depois na PUC do Rio de Janeiro, e nós oferece um modo peculiar de olhar para a vida e para o mundo com generosidade, abertura e liberdade cativantes.
Ao apresentar o filme na noite de ontem (4) no cine São Luiz durante o 10o Janela Internacional de Cinema do Recife, o diretor lembrou que a morte do amigo aconteceu no momento em que Barbosa voltava dos EUA onde foi estudar cinema. O cineasta já declarou também que a ideia de transformar em filme a experiência do amigo vinha norteando sua cabeça desde 2011.
Neste seu terceiro longa-metragem, há uma curioso enquadramento inicial feito pelo diretor de fotografia Pedro Sotero (cada vez mais competente) muito próximo a imagem final que é vista em Casa Grande, longa anterior de Barbosa, também fotografado por Sotero.
Quase como um ponto de ligação visual entre o fim de um obra e o início da outra, vemos Gabriel, logo apos o prólogo do novo filme, dormindo numa casa humilde no início de sua jornada pela África, cerca de dois meses antes de sua morte. É o mesmo ambiente e atmosfera em que o adolescente Jean, em Casa Grande, dá mais um passo em direção à maturidade, com a janela do quarto no centro da tela.
No novo filme, Barbosa concentrou a história da trajetória do protagonista por quatro países: Quênia, Tanzânia, Zâmbia e Malauí. A simplicidade e encantamento percebidos pelo espectador na primeira parte do trajeto são os mesmos de qualquer observador sensível que aventura-se num ambiente como aquele vilarejo do Quênia. Com os personagens locais calorosos, gentis, a quem somos apresentados via Gabriel.
Uma vez apresentado o personagem, seu ambiente e seu objetivo temos, num segundo momento do enredo, a chegada da namorada Chris que desvia Gabriel… (o filme) alguns centímetros do foco inicial. Há um ponto delicado aqui, quase como uma desafinada musical, quando o casal informa ao público que nem tudo são flores por meio da primeira discussão deles na viagem, dentro de um ônibus. A desafinada não está na discussão, mas na maneira como ela é apresentada em seu diálogo concentradamente técnico, considerando o todo da melodia que é Gabriel e a montanha.
Já se compara, inclusive, este momento de Gabriel… com o da discussão sobre classe social na cena do churrasco de Casa Grande.
Por outro lado, Zappa e Abras mostram uma sintonia afinadíssima aqui. A necessária empatia que parece definir bem Gabriel pelas narrações em off dos personagens reais que viveram com o real Gabriel – salpicadas ao longo do roteiro – é facilmente percebida através do carisma do ator. Já a personalidade forte de Chris é também muito bem estabelecida, desde o momento em que Abras entra em cena.
Num outro nível de análise, podemos dizer – e aí talvez Barbosa não tenha essa consciência, pois seu filme não é mais apenas seu -, Gabriel e a montanha nos chega como algo libertador. Como uma fonte de inspiração, mostrado com segurança, inteligência e audácia cinematográfica, unindo técnica e sensibilidade humana para nos fazer lembrar que o mundo é um só e somos todos irmãos, por mais clichê que possa parecer essa obviedade cada vez mais deixada de lado.
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