Desconstruindo Harry
De uma época em que os filmes de Woody Allen levavam anos para estrear no Recife
Por Luiz Joaquim | 21.02.2018 (quarta-feira)
–publicado originalmente em 1999
Se alguém falasse, para um distribuidor europeu, que o penúltimo filme de Woody Allen ainda não foi lançado no circuito comercial do Brasil, ele certamente iria questionar o objetivo dessa curiosa estratégia. Na realidade, não é preciso ter negócios na área de cinema, no velho mundo, para querer desvendar essa lógica desvirtuada. O filme, no caso Desconstruindo Harry, já está prontinho desde 1997, e também pode ser adquirido em DVD. Como se não bastasse a assinatura de um dos últimos mestre vivo do cinema como bom motivo para agilizar a colocação desse filme em cartaz, ainda tem o agravante de que Desconstruindo de Allen (como é de costume com suas outras obras também) concorreu ao prêmio de melhor roteiro na cerimônia do Oscar no ano passado.
O lançamento no Brasil estava marcado, inicialmente, para o dia 29 de janeiro. O que acontece agora é que talvez não tenhamos a chance de ver, na tela grande, esse trabalho já considerado como um dos melhores do cineasta dessa recente safra. É que Allen já tem um produto mais recente (e, dizem, tão bom quanto Harry) em cartaz nos E.U.A., chamando a atenção dos distribuidores brasileiros. Chama-se Celebrity (leia crítica aqui), com o titânico Leonardo DiCaprio.
Mas não é por esse motivo que devemos relevar Desconstruindo Harry, afinal, não foi a toa que a película chamou a atenção da crítica internacional É preciso entender que, aqui, Allen retornou aos seus grandes personagens voltando a contar a história de um alter-ego chamado Harry Block (um ficcionista, com três ex-esposas e vários psicanalistas). Tem também a velha idiossincrasia sobre a relação homem x mulher, tem piada mordaz sobre religião, sobre política (ele cita as preferências sexuais de Clinton), e sobre sexo. Um detalhe que chama a atenção nesse ‘Allen’, é o linguajar muito sujo, e o sexo explorado em abundância.
O próprio Harry tem uma fixação por prostitutas. Numa cena típica do universo de Allen, seu persoangem acaba de transar com um mulata para, logo em seguida, declarar para a mulher que está preocupado com o universo, que está se expandindo. “Você já ouviu falar no buraco negro?”, ele pergunta. E ela, “claro, é com ele que eu ganho a vida”.
A vida de Harry é confusa, ou melhor, ele está confundido a vida real com a imaginária. Por causa disso escreve um livro no qual seus personagens são extremamente parecidos com os que lhe circundam a vida. Como ninguém gosta de ver a intimidade publicada num livro, mesmo que sob um pseudônimo impróprio, Harry começa a apanhar, literalmente, da ex-esposa (Kirstie Alley). Sua cabeça está tão embaraçada na ansia que terminar o livro, que nem consegue arrumar uma pessoa que o acompanhe na cerimônia em que será homenageado pela faculdade que estudou.
A confusão em sua cabeça é tanta, que afeta até seu sono. Como que projetando sua indefinição diante da vida, Harry sonha com um de seus personagens (Robin Williams) perdendo o foco num set de filmagem. O problema é que ele perde o foco, não sob a lente desregulada, mas sob os olhos dos outros. Ninguém o enxerga direito (inclusive nós).
O toque de gênio do diretor é mostrado logo na abertura intrigante. Numa sequência repetida de forma exaustiva, em que a amante de Harry (Judy Davis) chega de táxi umas cinco vezes no mesmo lugar, Allen parece querer adiantar a desfragmentação do personagem que vai apresentar ao público. Na sequência do filme, cortes bruscos e secos, insinuando os bloqueios do seu personagem, que vive numa constante desconstrução da realidade. Não é à toa que seu sobrenome é Harry BLOCK. E não é a toa que Allen costuma concorrer a prêmios de roteiro.
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