O Insulto
Líbano participa do Oscar pela primeira vez com obra que esgarça a complexidade política em seu país
Por Luiz Joaquim | 08.02.2018 (quinta-feira)
É bom quando a existência de um filme soa fundamental para os dias de hoje, e tenha a exposição e o reconhecimento internacional que O insulto (L’insulte) está alcançando. Essa coprodução entre o Líbano, Chipre, Bélgica, França e Estados Unidos, dirigida pelo libanês Ziad Doueiri (conhecido no Brasil por Lila Diz, 2004) agora está sob os holofotes do Oscar 2018, quando concorre, próximo dia 4/3, ao “homenzinho dourado” de melhor filme estrangeiro. E já chega fazendo história, por ser o primeiro filme daquele país a estar nesta disputa.
Indo pela máxima de Tolstoi, “Fale de sua aldeia e estará falando do mundo”, o leitmotiv em O insulto pode servir de referência para qualquer país dividido em duas partes. Sendo a soma da intolerância com a irracionalidade do ódio a faca que separa essas duas facções. Nada mais atual para descrever o que o Brasil, por exemplo, guarda para seus cidadãos neste histórico ano de 2018, considerando o contexto político em que estamos mergulhados.
Considerando, entretanto, que a tensão no filme transcorre em Beirute, entre o libanês cristão Toni (Adel Karam) e o palestino refugiado Yasser Salameh (Kamel El Bashar, melhor ator no Festival de Veneza 2017), as dimensões aqui ganham proporções talvez difíceis de serem percebidas pelo espectador que não tenha o mínimo de familiaridade sobre o histórico bélico daquele país, que viveu uma guerra civil oficialmente encerrada em 1990, mas oficiosamente segue presente na cabeça de muitos libaneses.
Neste contexto, Yasser lamenta-se para sua esposa: “nós somos os negros daqui”, sintetizando o preconceito que seu povo vivencia no Líbano. Com estes e outros exemplos espalhados em diálogos ao longo do filme, o excelente roteiro de Doureiri (com Joelle Touma) vai também educando o espectador para a dimensão do que há de sensível na relação cotidiana entre esses dois povos habitando diariamente o mesmo ambiente.
No caso, Toni é o dono de uma oficina mecânica e está prestes a se tornar pai pela primeira vez. Tem uma vida estável e trabalha duro para comprar o apartamento de primeiro andar onde reside. Certo dia, enquanto agua as plantas na varanda, não percebe que por um problema em sua calha acaba molhando os operários da empreiteira contratada pela prefeitura para fazer melhoramentos na rua.
Entre eles está o também muito sério e comprometido capataz da obra, Yasser, que bate à porta de Toni pedindo autorização para verificar o problema. Mesmo com a recusa, Yasser resolve consertar a calha por fora do prédio. Tony desaprova o trabalho e reage com violência, enquanto Yasser devolve com um insulto que, pela tradução do filme no Brasil, ficou “babaca do caralho”.
Uma semana depois, noutro encontro entre os dois, a circunstância que deveria ser pacificadora termina com violência física por conta de outro insulto, desta vez de Toni para Yasser: “Quisera eu que Ariel Sharon tivesse exterminado todos vocês”. Toni fazia referência aos ataques que o então ministro da defesa de Israel infligiu contra a Organização para a Libertação da Palestina (OLP) para expulsá-la do Líbano no início dos anos 1980.
Daí por diante, aquilo que poderia ser resolvido com um formal pedido de desculpas vai à justiça e, diante dela, num tribunal, os personagens e seus históricos ganham novas nuances, assim como a própria dimensão desse desentendimento entre os dois homens.
Aspectos de uma guerra que massacrou milhares de famílias voltam à tona durante o julgamento e mesmo os advogados das duas partes se deixam envolver pelas injustiças da História com “H”, tornando o assunto de interesse (e descontrole pela violência) nacional.
Cercado por um elenco – e não apenas Adel Karam e Kamel El Bashar – que domina todas as cenas com maestria, o diretor Doueiri cria um ambiente constantemente tenso e deixa em O insulto um recado claro. Não há vencedores e vencidos ali. Todos são derrotados da história que fez deles o que são.
Não havendo solução simples, não há convivência simples; mesmo que os protagonistas sejam dois homens sérios e que, a certa altura, comecem a enxergar pela perspectiva do outro e a relativizar suas próprias exigências. Ainda que um ajude ao outro no enguiço de um carro, ou se coloque deliberadamente como um saco de pancada para receber um soco por compaixão para aliviar a angústia de seu “inimigo”, não há saída simples. Mas, ainda assim, ela deve ser perseguida
0 Comentários