90º Oscar (2018) – Ela não é ele.
O mundo vai melhorar, e o Oscar está ajudando.
Por Luiz Joaquim | 06.03.2018 (terça-feira)
“A forma da água foi o grande vencedor da 90ª edição do Oscar”, alardeam quase todas as manchetes, mídia afora. Mas eles se enganam. Tendo concorrido a 13 estatuetas, a obra de Guilermo Del Toro levou quatro – incluindo as cobiçadas de melhor filme e direção. Mas a grande vitoriosa na noite de 4 de março de 2018 foi, na verdade, a chilena Daniela Vega, 27 anos.
A protagonista do melhor filme estrangeiro desta edição, Uma mulher fantástica (2017), é a primeira atriz transgênero a subir no palco do Dolby Theater, integrando a cerimônia mais importante da indústria cinematográfica deste planeta.
Se em 2017 essa mesma indústria virou a cara para o incontornável Tangerine (2016), de Sean Baker, e suas incríveis atrizes Kitana Kiki Rodrigues e Mya Taylor, desta vez não teve como escapar do talento de Vega, que representa a alma e o corpo (feminino) no filme de Sebástian Lelio.
A presença de Vega, por duas vezes na mesma noite, no palco do Oscar nos mostra uma revolução midiática que ainda não somos capazes de comensurar. Se compararmos a retrógrada cultura norte-americana como uma espécie de nave-mãe que irradia tendências de comportamento para o mundo, desde os anos 1920, pelo cinema que produz – e essa cultura é a da intolerância pela diversidade sexual -, então, ter Vega imponente, talentosa e elegante à frente de um grupo de pessoas das mais influentes do mundo, e naquela que é a maior vitrine da cultura midiática cultural, é, certamente, a grande vitória da noite.
Não havia Meryl Streep, com toda sua história e sua performance ‘ok’ em The post: A guerra secreta, de Steven Spielberg, que ofuscasse isso. Na verdade, aconteceu o contrário. Streep tornou-se uma piada na apresentação de Jodie Foster, que entrou no palco mancando, de muletas, e explicou: “Foi a Meryl, que ‘me deu aplicou um ‘I, Tonya’”.
E ainda que o grande foco da noite viesse a se concentrar em Frances McDormand como a melhor atriz por Três anúncios para um crime e o seu discurso politizado – gerando um dos grandes momentos da festa, quando todas as concorrentes de todas as categorias ficam de pé ao seu comando -, ainda era Vega a maior vitoriosa. Vega tinha seu corpo como discurso. Sua presença era o discurso. Sua presença era a vitória.
Há cerca de um mês, o Brasil, por meio de outro evento cinematográfico, também deu um exemplo emblemático que marcará 2018. Com colossal menor impacto que o Oscar (mas com outro e significante peso de importância) a 21ª Mostra de Cinema de Tiradentes entregou o Prêmio Helena Ignez a atriz trans Júlia Katharine pelo documentário Lembro mais dos corvos, de Gustavo Vinagre. Leia sobre a força de Júlia e do filme clicando aqui.
POLÊMICA – Polêmica em torno da fala feita pelo comentarista da cerimônia no canal TNT brasileiro começaram a pipocar pelas redes sociais logo após o veterano crítico Rubens Ewald Filho soltar, ao vivo, a frase “Essa moça na verdade é um rapaz”, quando Vega subiu ao palco pela primeira vez com a equipe de Uma mulher fantástica.
Conhecido por pertencer a uma escola tradicional na crítica, cuja predileção recai sobre os grandes clássicos de Hollywood e seus modelos reproduzidos ainda hoje, Rubens e seus erros (a fala contra Vega não foi o único equívoco da noite. O comentarista soltou que McDormand não era bonita) parecem mais fundados num certo tipo de ignorância e falta de sensibilidade sobre o assunto, do que baseado em ódio aos transgêneros ou ao que vá contra padrões de beleza.
E como sabiamente disse outro crítico de cinema, o também veterano Celso Sabadin: Hollywood também tem sua parcela de responsabilidade. Seu padrão “clássico de beleza e aceitação dominou a história do cinema”. Isso vem acontecendo há décadas. Talvez hoje “com menos força que antes, mais ainda de maneira dominante”.
É um mundo complexo.
Conheça, clicando aqui, todos os premiados na 90ª edição do Oscar.
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