Jogador N.1 (texto 2)
Com explosão sensorial, Spielberg filma mundo distópico preso à cultura pop do século 20.
Por André Pinto | 30.03.2018 (sexta-feira)
Difícil não comparar o mais recente trabalho de quem já foi o Midas de Hollywood, com a safra de blockbusters de super-heróis que impregna a indústria de Hollywood. Analisando friamente a experiência de assistir Jogador Número Um numa tela IMAX turbinada (sim, o santuário cinéfilo do século XXI é bem diferente dos templos clássicos art-déco de outrora – é a cara da parafernália CGI tecnológica digital vibrante do atual cinema de entretenimento), pode-se dizer em um primeiro momento que é um mero filme-pipoca barulhento e caótico, o tipo de filme que atende a todas as necessidades do espectador de fim de semana que busca apenas uma distração. O chamado Rollercoaster ride. Uma vez que a diversão de montanha russa termina, joga-se o balde de pipoca no lixo, entrega os óculos 3D e vai passear pelo Shopping Center.
Entretanto, o que se acabou de ver na telona não foi um filme do Michael Bay, J.J. Abrams ou Zack Snyder. Estamos falando de Steven Spielberg, cuja filmografia encontrou seu ponto alto em fins da década de 1970, e início de 1980. O ritmo vibrante, jovial e aparentemente caótico do Jogador Número Um vem de um cineasta de 71 anos com mais de 40 anos de carreira, cuja última obra foi um drama particularmente lento e meticuloso com toques de thriler político, The Post.
Isso não é novidade. Uma das características autorais de Spielberg reside em mostrar pólos opostos de temáticas e ritmos ao realizar duas produções quase ao mesmo tempo. É o único diretor que estabelece essa incomum “dobradinha”: Jurassic Park e Lista de Schindler – Munich e Guerra dos Mundos – Prenda-me Se For Capaz e Minority Report – BFG [O bom gigante amigo] e Ponte dos Espiões.
A minha paixão pela obra do diretor veio pelo encantamento de suas fantasias. Pelo toque ingênuo e sentimental de personagens comuns que se vêem enfrentando situações extraordinárias. É justamente essa característica às vezes melodramática, mas humana, de Spielberg que salva Jogador Número Um. É o que faz enxergar esse novo filme como algo além de um mero videogame filmado no estilo Michael Bay de caos.
Jogador Número Um é baseado em um livro de Ernest Cline, lançado em 2011. A história, por si só, já nasceu como uma ótima receita para um filme escapista. Em 2045, O mundo é engolido por uma crise econômica e social. Nas periferias, onde pilhas de trailers formam um gigantesco ferro-velho, as pessoas encontram uma foram de escapar da dureza vivendo em um fantástico mundo de realidade virtual chamado OASIS. Criado por um brilhante, mas excêntrico guru da tecnologia, James Halliday (Mark Rylance, ator que caiu nas graças do diretor), o universo se expandiu de forma tão radical, que os humanos passaram a viver mais como avatares do mundo virtual, do que humanos no deprimente mundo real. Quando o guru morre, lança um desafio: Legará todo o universo do OASIS e sua fortuna para quem encontrar um EASTER EGG escondido em seu domínio virtual. Os jogadores que se lançam ao desafio sabem que o segredo para se ter sucesso e ganhar o OASIS é literalmente entrar na cabeça de seu criador. O herói da trama, Wade Watts (Tye Sheridan), que se considera o maior especialista em James Halliday dentro do game, dá os primeiros passos para conseguir o prêmio, mas sofre ameaças de uma corporação que pretende se apossar do OASIS e todo o seu potencial.
Um dos grandes méritos do Jogador Número Um, e o que o torna mais reflexivo do que mero blockbuster vazio, é o fato de toda a trama se arvorar em um personagem fascinante, mas que não é exatamente o protagonista: James Halliday. A profusão de nostalgia, que tem sido o chamariz de público para o filme, vem do fato do criador do OASIS ser um Millenial, alguém com apego e obsessão pela cultura pop das ultimas décadas do século XX. Assim como os usuários do mundo virtual fogem da dura realidade, Halliday, incapaz de lidar com as convenções sociais do mundo real, criou o OASIS como o seu próprio esconderijo subconsciente de sonhos e pesadelos, a única forma que encontrou para se comunicar. É a consciência da própria mortalidade que faz o guru refletir sobre como a sua fuga o fez perder o sentido da vida e criar algo tão poderoso ( e perigoso) como o OASIS.
O outro mérito, obviamente (muitos que me conhecem vão me acusar de favoritismo) vem do maestro Spielberg. Estamos falando de um dos motivos pelo qual a trama de Jogador Número Um tem sua razão de existir como livro: Steven Spielberg. O cineasta ajudou a moldar a cultura pop através da dupla função de diretor/produtor entre 1970 e 1990. Nada mais conveniente. Nenhum outro diretor teria tanto apreço ao material quanto o diretor de ET, Caçadores da Arca Perdida e Jurassic Park. Usa seu domínio completo de mise-en-scène e não tem o menor pudor em fazer pura diversão sem sair do cerne da história. Tudo serve ao plot, e cada cena de ação coreografada leva a um momento surpresa, remetendo às sequências de ação arquitetadas em Caçadores da Arca Perdida e Minority Report.
É dificil não destacar boas cenas sem revelar algum spoiler. Spielberg é alguém que sabe começar um filme – colocando as peças certas no lugar. Através de um simples plano sequência, quando o protagonista se prepara para entrar no mundo virtual, o diretor consegue estabelecer perfeitamente o universo de dominação do OASIS no mundo real.
O início, mostrando uma alucinada perseguição em torno da primeira chave para a descoberta do Easter Egg, é uma mostra do caos controlado Spielberguiano. Parece uma emulação de uma cena de ação de Transformers ou Vingadores, mas o assunto é centralizado (estilo de ação comum nos filmes dos anos 1980, e que foi resgatado em Mad Max Fury Road) e o corte excessivo foi trocado por um plano-sequência, mais próximo ao estilo videogame. Mais uma vez, não é colocado de forma gratuita, e a resolução é inteligente, levando a trama para frente.
O visual do OASIS é mostrado de forma cuidadosa, aparentemente excessiva, mas completamente coerente com o fato do Universo retratado ser rico e complexo. O mundo de Halliday é sedutor, um repositório pop audiovisual quase infinito.
No segundo ato encontramos uma unanimidade. Talvez a cena que até os detratores do filme colocam como clássica. Um certo filme de horror é ressuscitado em todo o seu esplendor, proporcionando alguns dos momentos mais divertidos do filme. O que alguns acham ser apenas uma mera reciclagem, na verdade serve perfeitamente para estabelecer mais um traço da personalidade do Halliday. Repetindo, nada é mero enfeite. Existe um respeito ao plot.
O terceiro ato, que costuma ser o DRAG apontado pela crítica, o seu ponto mais fraco, na verdade oferece o momento mais fascinante do filme: quando finalmente é revelado a moral da história, na forma da terceira chave. Além da obrigatória batalha climática do bem contra o mal, existe vários momentos que só enriquecem a mítica em torno da história. É belo observar a mágica cena que mostra o contraponto do rico e deslumbrante visual CGI do OASIS, e uma simples e quase monocromática tela de tevê ligada em um Atari 2600, representando ao mesmo tempo a memória afetiva de seu criador, e a solução para o destino do mundo virtual. É ainda mais interessante o modo como o Easter egg, um objeto mítico do mundo virtual, consegue impor seu poder até mesmo quando é exibido de forma um pouco diferente no mundo real, mas não menos deslumbrante. É o momento em que os dois mundos quase se fundem. Uma representação de como a realidade virtual pode ser, de uma forma assustadora, uma ferramenta que poderá tornar qualquer universo virtual em algo palpável.
Mas a mesma mão que conduz fluentemente a narrativa, a torna por vezes pesada e óbvia. Em alguns momentos o diretor não parece confiar no próprio material: A narração é excessivamente didática em alguns pontos, e tenta verbalizar as referências para os leigos, o que soa forçado. O discurso heroico do protagonista está presente, e beira o cafona. Entretanto logo em seguida encontra o ritmo certo e avança para uma conclusão surpreendente.
Mesmo impondo certos vícios autorais, Spielberg prova ser o realizador certo para recontar no cinema a agitada trama de JOGADOR NÚMERO UM. Mostra como ainda existe um pouco daquele espírito moleque e jovem que o impregnava no início de carreira, e que produziu talvez seus melhores filmes. Me lembro em entrevistas quando o diretor de Contatos Imediatos do 3º Grau (meu filme favorito de todos os tempos) afirmava que seu maior desafio era fazer filmes sérios. Lamento discordar. Acredito que os filmes sérios de Spielberg viraram a sua zona de conforto. O universo que ele deveria abraçar de vez, justamente o tipo de material desafiador e com resultados bem mais interessantes de sua filmografia, é o da fantasia. É ali que podemos encontrar a essência Spielberguiana. É o Easter Egg que vale a pena ser descoberto.
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