Deuses e Monstros
É possível comparar um filme com uma pena que cai? É
Por Luiz Joaquim | 04.05.2018 (sexta-feira)
– publicado originalmente em 30 de abril de 1999 no Jornal do Commercio (Recife)
Uma pena. É possível comparar um filme a uma pena? Sim. A adaptação da novela de Christopher Bram, Gods and Monsters para o cinema permite tal liberdade de analogia. Uma solitária pena solta no ar, pode suscitar um desenho imaginário do itinerário de uma vida. Com idas e voltas, dançando em torno do seu próprio eixo e surpreendendo com reviravoltas contra o vento, a pena vai caindo muito lentamente, sem pressa. Sabe-se que ela encontrará seu fim. Sabe-se que está sendo conduzida e que, invariavelmente, irá em determinado momento interromper seu trajeto em algum obstáculo. É dessa forma que decorre os 105 minutos de Deuses e monstros, em cartaz na sessão de arte do São Luiz, hoje (30.04.1999) e segunda (04/05/1999).
O filme traz à tela a biografia de James Whale. Diretor inglês que, na década de 1930, realizou grandes clássicos do horror como Frankenstein, O Homem Invisível e A Noiva de Frankenstein. Interpretado por Sir Ian MacKellen (de Bent e Ricardo III), Whale é mostrado em sua doente velhice, na qual nada parece merecer tanta importância. Importunado por constantes lembranças de uma vida agitada, pelos horrores da guerra, e controvertida, por ter assumido sua preferência sexual numa época difícil, ele termina os dias numa confortável mansão ladeado por sua dedicada empregada Hanna (Lynn Redgrave). Ao descobrir o novo jardineiro, Clayton Boone (Brendan Fraser, de O Homem da Califórnia e George, O Rei das Florestas), tem início uma amizade que vai moldando valores comuns a cada um dos dois personagens, aparentemente distintos.
A hábil maestria com que o diretor e roteirista de Deuses e monstros, Bill Condon, conduz seu trabalho acaba por arrastar o espectador ao interior daquele breve momento na vida dos dois amigos. É o conjunto formado por um equilibrado domínio na montagem, dando o timing perfeito a cada situação do filme, e o abalizado roteiro recheado de diálogos iluminados por fina ironia, que explicam um dos poucos resultado de justa premiação no Oscar desse ano. A estatueta de melhor roteiro adaptado ficou com esse filme de Condon.
E é justamente dessa união, equalizando tempo e conteúdo, acrescida de harmonia na atuação do elenco, que Deuses e monstros inspira empatia em quem quer o procure. A despreocupação em conquistar o público impressa na narrativa do filme, mostra-se bem mais eficiente que uma estudada tática de arrebatação profissional, geralmente utilizada na divulgação pelas grandes distribuidoras. Como quem testemunha uma pena que cai, o público que for assistir este filme irá se deparar com um elemento que raramente se apresenta no cinema americano: a calma.
Centrado na reflexão que a proximidade da morte costuma despertar e passeando por temas que remetem à homossexualidade, a fama, a guerra, e a vida profissional (e ao que realmente isso importa), pode-se enxergar, também nesse trabalho, uma sutil analogia entre a obra e a vida de James Whale. Buscando inspiração no maior sucesso do cineasta – Frankenstein – Condon revelou os verdadeiros monstros que vagavam pela cabeça de Whale.
Dando forma a tudo isso, está o Ator (com A maiúsculo mesmo) Ian Mckellen. Sabedor da força contida e do efeito que uma “simples” expressão facial pode provocar, Sir McKellen calca sua performance num minimalismo que empresta uma indiscutível verosimilhança ao seu James Whale. Considerando qualidade interpretativa, fica incompreensível entender porque o Oscar de melhor ator foi para Roberto Benigni. Já a premiação de Lynn Redgrave pela melhor atuação feminina coadjuvante do ano passado não levanta suspeitas. Bem como Redgrave, o bonitão Brendan Fraser assumiu com respeito e competência o jardineiro que aprende a reverenciar o monstro James Whale. Como ao ouvir um instrumento bem afinado, pode-se escutar, em cada momento que McKellen contracena com Fraser ou Redgrave, uma orquestrada harmonia de interpretação.
Solte uma pena no ar e veja Deuses e monstros, ou vice-versa. Se quiser, é possível ir além e dar cor a essa pena. Escolha uma pena azul. Há uma visão feminina que enxergou tal cor na pena Deuses e monstros. Não me peçam para explicar. Não sou uma mulher.
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