O Caminho para Casa
Zhang Yimou dá forma ao amor, mas começa a pesar a mão, como num melodrama ocidental.
Por Luiz Joaquim | 16.05.2018 (quarta-feira)
– publicado originalmente em 13 de abril de 2001 no site Tô na boa
Uma rara obra, de beleza incontestável, no Cineteatro Apolo. Trata-se de O Caminho para Casa, de Zhang Yimou, que traga o público para um poderoso turbilhão de carinho e desejo; fazendo muita pressão no peito do público e empurrando lágrimas para fora dos olhos. Já o Cinema da Fundação mostra duas produções francesas.
Podemos dizer que qualquer boa peça de arte prescinde uma grande dosagem da combinação entre talento e extrema sensibilidade por parte do artista. Sem isso, e muito trabalho também, é impossível para o autor converter a obra sobre a qual se debruça numa peça capaz de comover a humanidade. Alguns ingredientes metafísicos, como a morte (e, conseqüentemente, a saudade) arrebatam atenção garantida do público – afinal, cedo ou tarde, todos têm de lidar (ou já lidaram) com a ausência de alguém próximo. Nessa receita, talvez a paixão seja o condimento mais aproveitado para montar uma arrebatadora obra de arte. No cinema, a paixão é, geralmente, sub-aproveitada, mas em O Caminho para Casa (Wo de fu qin mu qin, China, 1999), o diretor Zhang Yimou não só a empregou com, para usar uma palavra hoje escassa, ‘dignidade’, como também conduziu o drama vivido pelos jovens atores Ziyi Zhang e Honglei Sun com uma leveza que só poderia ser concebida por alguém que possua um domínio sóbrio da linguagem cinematográfica.
Talvez o único senão em O Caminho para Casa (estreando domingo, 15.abril.2001, no Cineteatro Apolo) seja sua carga melodramática. Ou seja, a fita caminha carregada por uma insistente trilha sonora que atribui uma alegoria desnecessária ao que já está adequadamente exacerbado com imagens. Resumindo, a música é demais no filme, com um agravante que essa mesma melodia lembra a de Titanic. Escutando-a isoladamente a semelhança pode soar menor, mas quando, no início do filme de Yimou, vemos o cartaz do longa de James Cameron colado na parede do quarto de um dos personagens, não há como desvencilhar as duas entonações musicais.
Esse elemento musical açucarado vem ratificar a gradativa ocidentalização de Yimou a cada novo filme que produz. No seu anterior, Nenhum A Menos – exibido nos multiplex, cuja história mostra uma professora adolescente indo procurar seu aluno numa cidade grande – o maior exagero de dramatização do cineasta aconteceu justamente quando mostra a jovem professora chorando (também com uma música capciosa) de frente às câmeras de uma emissora de TV.
Mas, por outro lado, Yimou também recheia seu O Caminho Para Casa de deliciosas influências orientais (inclusive no modo de dirigir). O filme inicia com imagens em preto e branco (o tempo presente, da saudade), com a voz em off de um professor da cidade que volta para o vilarejo onde nasceu. Lá, ainda vive sua alquebrada mãe, cujo sofrimento não tem comedimento pois seu marido, um velho professor com quem viveu por 40 anos, morreu subitamente numa viajem. Dona de uma persistência proporcional ao amor que guardava pelo companheiro, a velha senhora exige um cortejo fúnebre, a pé, da cidade onde seu marido morreu, até a comunidade onde eles viviam juntos.
Sob intensa e inúteis tentativa de fazer sua mãe desistir da idéia de caminhar tanto e por tão longo caminho, o filho começa a relembrar a já folclórica história de como seus pais se conheceram, há mais de quatro décadas. A partir daí, o diretor Yimou no leva ao passado (tempo de ação, para os hoje idosos) e nos mostra, em cor, a dimensão do amor da moça de 18 anos (Zhang) pelo novato professor, dois anos mais velho, que chegava a pequena aldeia.
É nessa época que transcorre a maior parte de O Caminho para Casa. Yimou ilumina a tela grande (o filme é em cinemascope) com todo a brilho da luz que pode conseguir de árvores com folhagens amarelas emoldurando uma vasta paisagens campestre. O idílico cenário torna-se mais magnético quando vamos acompanhado o crescente e nobre sentimento da moça pelo rapaz que, pertencendo a uma casta mais elevada, dificilmente se interessaria por ela (considerando, em particular, as convenções locais da época).
Mas isso não é o importante.O pertinente aqui é a alta capacidade de transmitir pureza que Yimou atingiu em conjunto com a atriz Ziyi Zhang. A densa carga de humanidade que seu sorriso traz em si, quando simplesmente vê o professor ao longe, acaba sendo transferida para tudo que ela faz. Como a imagem da comida num prato, que Yimou mostra insistente e isoladamente em determinada seqüência. Neste filme, um prato de comida, um pedaço de pano ou o apego a um broche pode se transformar em um símbolo da mais sincera expressão de amor humano. Traduzir, com autenticidade, o amor em objetos palpáveis deve demorar bastante para desabrochar numa produção ocidental.
Em O Caminho para Casa, Zhang Yimou não só dá forma ao amor, como puxa o espectador, aos poucos, com suave delicadeza, para dentro das angústias, da incerteza e da saudade de sua protagonista. Um turbilhão poderoso de carinho e desejo que aperta o peito do público e empurra lágrimas para fora dos olhos.
Dupla francesa discute paixões no cinema da fundação – Uma Relação Pornográfica (Une Liaison Pornographique, Bélgica, 1999), de Frédéric Fonteyne, e A Mulher e O Atirador de Facas (La Fille Sur Le Pont, França, 1999), de Patrice Leconte, dividem a tela do Cinema da Fundação. O primeiro é o mais interessante. Ali, um homem sem nome (Sergi Lopez) e uma mulher (Nathalye Baye) marcam encontro através do anúncio numa revista e passam a se encontrar num hotel, todas as quintas-feiras, para realizar uma fantasia sexual que nunca nos é revelada. O interessante é observar o gradativo (e contra a vontade) envolvimento deste atípico casal.
Entre os dois, um sentimento mais caro só vem a nascer sob protesto, a revelia, de seus desejos de manter o anonimato (nós, espectadores, nem sabemos o nome dos personagens). O que vemos é um homem e uma mulher que gostam um da companhia do outro, e que não usam ‘joguinhos’ de sedução, pois a ‘conquista’ do sexo do outro já é uma fase ultrapassada. Uma Relação Pornográfica é um ótimo filme para nos chamar a atenção sobre a falsa-supremacia do sexo sobre as coisas da vida. Algo extremamente explorado na nossa sociedade.
O segundo filme, A Mulher e O Atirador de Facas é um produto sem o habitual equilíbrio dramático de Patrice Leconte. Neste filme, Daniel Auteil (A Rainha Margot) é o homem que salva Vanessa Paradis de se jogar de uma ponte parisiense. Ele, um atirador de facas, a convence de trabalhar como o seu alvo humano em apresentações ao redor do país. Ela aceita o risco por não ter nada a perder. Até os 20 minutos iniciais, Leconte prende o olho e a audição do espectador pela coerência e graça dos diálogos de seus personagens. Passado isso, ele insiste em repetir o que um público mediano é capaz de facilmente captar: que atirador e alvo humano não funcionam emocionalmente se forem separados. A graça perde espaço para a repetições e sequências (como a do prazer quase sexual de se submeter às facas voadoras de Auteil) que não sugerem tanta convicção. Para um melhor Leconte, vejam O Marido da Cabeleira (Le Mari de la Coiffeuse, França, 1992).
CIRCUITÃO, VÍDEO E TV – Os multiplex têm duas estreias capengas. Aproveitaram a semana santa para antecipar O Corpo (The Body, EUA, 2001), de Jonas McCord. Na película, acompanhamos a canastrice de Antonio Banderas como um padre que vai a Jerusalém para acompanhar uma equipe de arqueólogos que verificar se o corpo numa cruz, que foi encontrado naquela região por cientistas, é de Jesus Cristo. A outra opção é a estrela de Brendo Freaser brilhando na aventura infantil Monkeybone: No Limite da Imaginação (Monkeybone, EUA, 2000). Freaser faz um quadrinistas, preste a casar, que sofre um acidente de carro e fica em coma. Neste estado, sua mente vai parar numa dimensão cuja grande autoridade é sua criação: o macaquinho Monkeybone.
Para alugar um vídeo, o filme brasileiro O Corpo pode ser a contrapartida engraçada para O Corpo norte-americano. No longa tupinquim, que também tem um Antônio (o Fagundes), o protagonista vive com duas mulheres na mesma casa, e ainda tem tempo e fôlego para pular a cerca. Na TV, o canal aberto trás um programa imperdível para quem gosta de cinema. O programa Roda Viva, nesta segunda-feira (16.abril.2001), entrevista o documentarista norte-americano Frederick Wiseman. Mestre do chamado cinema direto, ele esteve no Brasil participando do É Tudo Verdade – Festival Internacional de Documentários.
A bancada de entrevistadores é formada por Vladimir Carvalho, documentarista e professor de cinema na Universidade de Brasília; Lúcia Nagib, articulista de cinema e professora da Escola de Comunicação e Artes da Universidade de São Paulo; Lucas Bambozzi, jornalista, videoartista e documentarista; Amir Labaki, diretor do É Tudo Verdade; Sérgio Rizzo, professor de jornalismo da Faculdade Cásper Libero e crítico cinematográfico; Luiz Carlos Merten, crítico de cinema e televisão do jornal O Estado de S. Paulo; e Lázaro de Oliveira, pauteiro do programa Metrópolis da TV Cultura. Não deixem de ver!
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