Elefante
A soma das partes não é suficiente para decifrar o mistério do todo.
Por Luiz Joaquim | 18.07.2018 (quarta-feira)
– publicado originalmente no jornal Folha de Pernambuco em 2004
Cannes está duplamente em cartaz no Recife. Primeiro por Diários de motocicleta, de Walter Salles, que sobreviveu bem ao presente de grego de Brad Pitt, e ganhou mais uma semana nos multiplex. Segundo, por Elefante, filme de Gus Van Sant, que levou o prêmio máximo do festival francês no ano passado, e estréia hoje no Cinema da Fundação. Em 2003, a Palma de Ouro foi concorrida. Só para refrescar a memória, lembramos que estiveram lá As Invasões Bárbaras, Osama, Sobre Meninos e Lobos e The Brown Bunny (inédito no Brasil). Todos foram derrubados por Elefante – um dos filmes mais conceituais de Van Sant que, inspirado pelo massacre de estudantes em Columbine (que deu ainda origem ao documentário de Michael Moore, Tiros em Columbine), coloca em questão a pluralidade da verdade.
Para dar corpo a esse questionamento, Van Sant faz o espectador acompanhar vários alunos de um colégio, através de longos travellings, colocando a platéia em pé de igualdade com a perspectiva de estudantes específicos. Desta forma, a câmera de Van Sant se ocupa em percorrer, silenciosamente, os corredores da escola apenas ‘olhando’ e ‘ouvindo’ adolescentes com seus problemas e desejos, suas dúvidas e certezas, mas sem nunca se aprofundar em nenhum deles. Nenhum diálogo é revelador. Pelo contrário, refletem apenas a banalidade do cotidiano (e o que há de rico nisso tudo, quando se tem a perspectiva da morte). A câmera apenas humaniza os personagens, não os julga. Essa capacidade Van Sant deixa para o espectador.
Mas, mesmo livre para julgar, não há causas em Elefante que dê ao público razão para explicar o que se sucede no final do filme. Mesmo utilizando a escola como um retrato da sociedade, na qual todos precisam aprender a lidar com o poder e se conformar com a autoridade, o filme tem a qualidade de não apontar respostas sociológicas à tragédia iminente. Há, porém, uma sugestão homossexual sobre os autores do massacre que borra um pouco a imparcialidade do filme.
Mas todas as possíveis respostas que a mídia nos empurra como rompantes de violência (coisas do tipo, exposição dos jovens a videogames violentos, discriminação, descaso familiar, acesso à ideologia nazista e armas pela Internet, etc.) parecem dissimular-se quando vemos um dos algozes extremamente íntimo da arte criada por Bethoveen, quando toca ao piano Pour Elise. Ou seja, de onde vem à razão da tragédia, se seus monstros são cultos o suficiente para compreender a arte pura?
A pergunta fica vagando pela cabeça do espectador, como um elefante no meio da sala, que ninguém vê, mas está lá. A propósito do título do filme, Van Sant se inspirou num outro filme, inglês, de Allan Clarke, no qual é mencionado a parábola budista do cego que quer saber o que é um elefante. Depois de começar a tatear o animal para descobrir sua forma, não consegue decifrar a verdade sobre o bicho, visto que a simples soma das partes (tromba, rabo, orelha) não é suficiente para decifrar o mistério. Elefante, o filme, é cinema com cérebro, mas para melhor desfrutá-lo, aconselha-se vê-lo livre de amarras com teorias sócio-explicativas.
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