Mais Estranho que a Ficção
Cara a cara com Deus
Por Luiz Joaquim | 23.08.2018 (quinta-feira)
-publicado em 12 de janeiro de 2007 no jornal Folha de Pernambuco
Alguns trailers são estúpidos. E isso é fácil de comprovar. Há alguns meses a Columbia Pictures sugere aos exibidores a projeção do trailer de Mais Estranho que a Ficção (Stanger than Fiction, EUA, 2006). A peça publicitária exibia os momentos mais óbvios do filme, mostrando Harold (Will Ferrell, de A Feiticeira) enlouquecendo aos poucos enquanto ouve a voz da escritora Kay (Emma Thompson) que o persegue, narrando os detalhes da vida dele simultaneamente ao que Harold está fazendo naquele instante.
A junção descuidada, no trailer, de trechos óbvios do filme é um desserviço não só por mostrar apenas a camada grosseira do enredo, sugerindo assim que estamos diante de mais um besteirol hollywoodiano, mas também por não dar nenhuma pista da essência de Mais Estranho…. Trata-se de um caso clássico de como não saber vender seu próprio filme. E a repetição excessiva da peça só aumenta o desconforto no espectador sobre o produto que ainda nem havia chegado ao mercado.
Visto o filme (entra hoje em cartaz), percebe-se que estamos diante de algo completamente diferente. E, talvez, daí possamos decifrado o “não saber vender seu próprio filme”. Sempre que um produto distribuído por uma major traz uma proposição mais reflexiva – como este novo trabalho de Marc Foster (de Em Busca da Terra do Nunca), mesmo que com final feliz, essa majors não consegue traduzir a mensagem ao seu público alvo, ou seja, aquela fatia grossa de pagantes que vão ao multiplex ávida por entretenimento rápido e indolor.
Sobre Mais Estranho…, apesar de não ser uma obra de arte pode se dizer que incita pelo melhor dos estímulos, a delicadeza, a repensar valores. O tom cômico aqui fica por conta do excessivo criado em torno do personagem de Farrell (convincente, pela primeira vez). Ele é um contador fiscal da receita federal, habilidoso com números. É daquelas pessoas certinhas, que respondem com correção quando lhe perguntam o resultado de 415 X 1312.
O burocrático e solitário Harold, enquanto ouve a narradora, descobre que sua “iminente morte” se aproxima. Desesperado, procura ajuda psicológica. Descartada a possibilidade de esquizofrenia, vai atrás de um especialista em literatura (Dustin Hoffman) até chegar a escritora que dita seus passos pelo romance que escreve. No meio do caminho, conhece seu oposto em forma de gente, a gerente de uma doceria (Maggie Gyllenhall, de Secretária), por quem seu coração dispara.
A brincadeira mostrando personagens às voltas com seu criador não é nova. Esteve no francês O Magnífico (1973), de Philippe de Broca, na pele do escritor Bob Saint-Clair (vivido por Jean-Paul Belmondo), como também em “Lugar Comum”, curta do pernambucano Leo Falcão, atualmente em carta no Programa Curta-Petrobrás, no UCI/Ribeiro Recife.
A diferença em Mais Estranho… é que seu roteiro (do estreante Zach Helm) é consistente o suficiente para colocar Harold diante de seu Deus, ou melhor, de sua autora, além de lhe tornar consciente de sua “iminente morte” e lhe dar o poder de decidir o que fazer com seu destino. Harold tornar-se assim, diferente de todos nós espectadores, ignorantes sobre nossas próprias vidas e sobre nossa iminente morte.
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