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Críticas

Pão e Tulipas

Rosalba e Fernando parecem soar impossíveis no mundo real.

Por Luiz Joaquim | 08.10.2018 (segunda-feira)

– publicado originalmente no Jornal do Commercio (Recife) em 21 de dezembro de 2001.

Será Veneza hoje, no imaginário coletivo, a cidade com maior capacidade de acionar a eletricidade de nossos impulsos românticos, usualmente adormecidos? Cheio de delicadezas, o filme do italiano Silvio Soldini, Pão e tulipas (Pane e Tulipane, 2000), chega perto de nos convencer dessa ideia. E a produção veio na época com o aval do crítico mais rigoroso de todos: o público.

A modesta produção italiana virou um fenômeno no Brasil quando foi lançado. Em São Paulo, o filme ficou em cartaz por quase cinco meses; no Rio, por, acreditem, 40 semanas. Para o recifense ter uma noção do que significa isso, basta recordar Ghost – Do outro lado da vida e suas “apenas” 35 semanas em cartaz no extinto cinema Veneza, entre 1990 e 1991; ou, para os mais jovens, às 22 semanas de Titanic, no São Luiz, em 1997.

Mas não são unicamente as vielas charmosas de Veneza (a cidade) as responsáveis pelo sucesso de Pão e tulipas. Não paira dúvida sobre a soberania da qualidade equalizada entre o elenco, seus personagens e enredo. A protagonista é Rosalba (Licia Maglietta), uma dona de casa, com dois filhos adolescentes, que é esquecida pela família numa estação rodoviária quando o ônibus, no qual todos estão excursionando, retoma a estrada. Antes que o ônibus retorne para lhe buscar, e sem dar satisfação ao marido rabugento, Rosalba resolve ir de carona até Veneza e, finalmente, conhecer a cidade cujo nome pronuncia com brilho nos olhos.

O que seria uma aventura de um dia transforma-se em dois, três… semanas, até. E isso só é possível porque ela conhece Fernando (Bruno Ganz, o eterno anjo de Asas do desejo). Da mesma forma que nós simpatizamos imediatamente com Rosalba, pelo seu atrapalho e pelo injusto desdém que recebe da família, o mesmo acontece com Fernando, um garçom polido e gentil. Funcionando aqui, também, como uma espécie de anjo, ele conquista nossa empatia pela sua dignidade e solidão melancólica. Com seu cavalheirismo, é, talvez, a melhor personificação de sonho que qualquer senhora de meia-idade abandonada pela afeição possa desejar.

Circundado essas duas figuras, há também a “massagista holística” Grazia (Marina Massironi); há o detetive amador Costantin (Giuseppe Battiston), e o velho florista anarquista Fermo (Felice Andreasi). Todos são personagens quase que impossíveis de encontrar num mundo real. Mas o interessante aqui é que seu elenco de interpretes atua nos seduzindo. Convencendo que eles podem existir. Essa é, aliás, a essência da interpretação.

É também na opção de Rosalba, no início do filme, de fugir da realidade dura do pão nosso de cada dia, para a fantasia alegre das tulipas, que está concentrada a força do filme. Afinal, é mesmo na irresponsabilidade de Rosalba e na dignidade de Fernando, tão difíceis de encontrar na rua, que queremos nos espelhar. E talvez esteja exatamente aí a razão de tanto regozijo quando nos deparamos com eles no cinema.

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