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Críticas

Coração do Mar

O drama não é o fim. O drama é o meio.

Por Luiz Joaquim | 27.12.2018 (quinta-feira)

Nada mais eficaz para demonstrar o tamanho da catástrofe que a violência urbana originada pelo preconceito provoca do que a personificação de um caso. De um modo geral, a dramaturgia audiovisual – telejornalismo incluso, cuja estrutura se transformou numa espécie de dramaturgia da notícia – segue a máxima (de apelo midiático) ventilada por Stalin: “Uma única morte é uma tragédia; um milhão de mortes é uma estatística”.

Indo por aí, temos o argumento de Rafael Nascimento para Coração do mar, ficção vencedora da categoria na competitiva em formação do 20º Festcine. E ele, o argumento, é para lá de eficaz quando vem ressaltar outra máxima urgente: “Vidas negras importam” – sendo esta de indispensável e necessário apelo social.

Pelo seu filme, Nascimento não apenas nos apresenta, mas também nos coloca muito próximo do adorável Cadu (o ótimo Murilo Farias). Um menino de dez anos de idade, negro, que vive com a mãe (Naruna Costa) e o irmão mais velho num subúrbio pobre de São Bernardo do Campo (SP). Na verdade, é só por essa qualidade – de nos aproximar muito do drama do garoto Cadu -, que Coração do mar resulta exitoso em seu desfecho.

Desde já, que fique registrada a competência do roteirista e diretor em sugar o espectador com tanta rapidez para o universo do menino Cadu. Para dar conta de tanto, só uma combinação de muitos aspectos próprios do cinema bem administrados. Senão, vejamos: em seus cerca de 20 minutos, Coração do mar nos oferece personagens, contexto social e ambientação profundos e com fôlego suficiente para que fossem desdobrados num longa-metragem. Sendo a dobradinha formada entre o final do filme e o imediato desejo do espectador de que o filme se perpetue o melhor indicativo dessa assertiva.

Mãe solteira, dividindo-se entre o trabalho e a criação dos dois filhos, ela lamenta não poder realizar o sonho do caçula de ir numa excursão de escola para Santos, conhecer o mar. Cadu, por sua vez, que havia trabalhado em segredo na feira livre carregando as compras das clientes, juntou um dinheirinho para realizar seu sonho.

Até a decisão da mãe em permitir que o menino faça a viagem, Rafael Nascimento vai nos colocando dentro da cabeça de Cadu e, o melhor, conduz Coração do mar num ritmo que parece ser o próprio ritmo do menino, e não o do adulto. O caminho de volta da feira para casa ilustra isso com maestria.

Há uma não-pressa do garoto em voltar para casa, quando ele, pelo caminho, vai se distraindo com a própria ambientação. Numa função dupla, o diretor faz dessa sequência, com o olhar curioso do menino, também um momento para nós, espectadores, olharmos curiosos para aquele ambiente.

A inteligência em não fazer o menino chegar com pressa em casa, porque é certo que haverá um elemento dramático lá esperando por ele, reside também no conceito de que a própria dramaturgia já está no cenário pobre que é o bairro onde ele reside, e em como o menino interage com este lugar.

Não à toa, um dos melhores momentos silenciosos em Coração do mar está com Cadu subindo lentamente por uma ruela íngreme, onde lá tem um policial em alerta, com a mão sobre a arma no coldre, esperando Cadu passar. O olhar do menino para o policial (este desfocado e em primeiro plano), numa mistura de inocência e receio, é cortante e muito eloquente sobre o lugar, o poder e o menino negro.

No trabalho de aproximação entre espectador e o seu protagonista, Nascimento ainda encontra espaço para representar o sonho que o menino tem numa noite de sono. Partindo para uma representação ali pelo tom surreal, com Cadu correndo pelas ruas escuras da cidade, com malabares lhe distraindo, e chegando finalmente ao mar, o filme não se exime de agregar referências diretas, sejam plásticas ou de montagem, de filmes como Pixote, a lei do mais fraco, Os incompreendidos e, porque não, O encouraçado Potemkin, com o seu infinito trajeto da escadaria, aqui substituído pelas areias na praia de Santos. E o resultado é, acredite, bom.

Ao conhecer finalmente o desfecho do menino Cadu, após tanto envolvimento no universo desse garoto negro, pobre, que só queria conhecer o mar, o público presente na sessão em que o curta foi projetado, no cinema São Luiz (Recife), soltou um uníssono: “OOOhhh!!!”.

Tal reação – Rafael Nascimento sabe -, é o melhor a ganhar de um público que, ao menos por ali, acompanhando a sina de Cadu, já entendeu que a vida perdida de um negro nunca deve ser tratada apenas como estatística.

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