Título pode ser o vilão do filme
Quem iria ao cinema ver um filme chamado “Ovo”? Entenda os mecanismos de titulação de filmes estrangeiros
Por Luiz Joaquim | 28.12.2018 (sexta-feira)
Publicado originalmente no Jornal do Commercio (Recife), ‘Caderno C’, em 21 de fevereiro de 2000, segunda-feira. Acima, foto divulgação de White Man Can’t Jump. No Brasil: Homens brancos não sabem enterrar.
Toda criação artística vem carregada de paixão e envolvida por um violento desejo do seu criador de que ela surta algum efeito positivo. Seja um efeito emocional ou comercial. A coroação dessa obra deve ser, a princípio, o título que ela recebe. Um nome que concentre e represente, da maneira mais clara e objetiva, toda a carga informativa e sentimental deste trabalho.
Esta difícil tarefa está na pauta semanal de uma dezena de distribuidoras de filmes no Brasil, responsáveis pela autoria de títulos em português para produções estrangeiras. Não é raro, para quem domina outro idioma, ir ao cinema e tomar um susto ao observar que o título original do filme não corresponde em nada à versão em português indicada nas legendas.
Anna Luiza Muller, Assessora de Comunicação da distribuidora ‘Lumiére’, reúne-se durante todas as manhãs de quinta-feira com o gerente de marketing, de vendas e a diretoria de programação para sugerir as alternativas de títulos das cópias que distribui no Brasil. “Cada um de nós leva uma média de três sugestões. Há casos em que o trabalho é rápido, pois o título original expressa universalmente o sentido do filme”. Como exemplo, ela cita O paciente inglês, que teve uma tradução fiel ao original. “Mesmo nestes casos, ainda pensamos em outros títulos”, diz.
Mas nem sempre é assim. A jornalista lembra que uma única palavra pode fazer muita diferença e cita Despedida em Las Vegas (Leaving Las Vegas). “Se fôssemos traduzir ao pé da letra, ficaria Partindo de Las Vegas ou Deixando Las Vegas. A simples decisão por Despedida de um tom poético, além de soar melhor”, explica.
Outro bom exemplo do cuidado tomado pela equipe da ‘Lumiére’ para encontrar a palavra exata aconteceu com A viagem do Capitão Tornado. “Se adotássemos a versão original do título, ficaria A viagem do Capitão Fracasso”. Substituímos Fracasso por acreditarmos que essa palavra pudesse surtir um efeito repelente no público”.
O princípio básico adotado por todas as distribuidoras é manter o nome original de batismo. Leon Cakoff, responsável pela coordenação dos filmes da Mostra Internacional de São Paulo, leva esse preceito a sério. Ele está colocando no mercado um filme sobre Brian Slade, músico que transformou o comportamento e o gosto dos roqueiros em 1971, levando vários garotos e garotas a pintar as unhas, o cabelo e explorar a sexualidade. “Resolvemos deixar o longa intitulado de Velvet Goldmine. Não duvido que algum outro distribuidor ficasse tentado a nomeá-lo como Nos tempos da purpurina”, brinca.
Muitas vezes é preciso adaptar o título à cultura local. Uma interferência que Cakoff considera pertinente foi o batismo que deu para Speak up!, It’s so dark (algo como: Desembucha! Tá muito escuro). O titulo brasileiro dá uma ideia mais abrangente do enredo. Ficou: Um skinhead no divã. Outro motivo de orgulho para Cakoff é o título nacional das trilogias das cores de Kiewslowiski. “O nome original é Três cores: Azul, branca e vermelha. A explicação que demos, aliando as três cores às palavras chaves da Revolução Francesa (Liberdade, igualdade e fraternidade), ajudou a despertar a curiosidade dos brasileiros”, fala Cakoff.
OVO – Quem iria ao cinema para ver um filme chamado Ovo? Esse foi um dos problemas de André Sturm, diretor da Pandora, e seu assessor de imprensa, Léo Mendes, tiveram que enfrentar para batizar o longa do holandês originalmente intitulado de Ei. Depois de muito esquentar a cabeça, ambos chegaram ao nome de Correio sentimental, para sintetizar a história de um padeiro que, apesar de analfabeto, namora por correspondência com uma pessoa que conheceu através de um anúncio de revista. “O título holandês fazia referência a mania que o protagonista tinha em equilibrar ovos”, explica Mendes.
Algumas vezes o tiro sai pela culatra, e essa expressão até serviu de inspiração para a equipe de Gisele Nusman, gerente de marketing da UIP Brasil (distribuidora da Universal, Paramont, MGM e DreamWorks). O tiro que NÃO saiu pela culatra é o título brasileiro para o filme Parenthood (que pode ser entendido como paternidade ou maternidade).
Nessa comédia, estrelada por Steve Martin em 1989, não tem tiro nem culatra. O assunto são os conflitos entre duas gerações distintas, de pais e filhos. Três anos depois, outro filme com Martin também foi vítima de um trocadilho ruim de engolir. Leap of Faith (traduzível como ‘Solavanco de fé’), mostra um pastor canastrão que vendia milagres, e ficou conhecido no Brasil como Fé de mais não cheira bem.
A escolha do subtítulo Três é demais para a produção americana Rushmore (nome da escola do filme) também não foi uma decisão interessante da Buena Vista Internacional. “O filme fracassou nas bilheterias”, conta o gerente de marketing Eduardo Rosemback. Quem também já teve problemas com uma titulação inadequada foi a Pandora com Mifune, terceiro filme da estética aplicada pelos dinamarqueses do Dogma95. “Cheguei a receber ligações de jornalistas perguntando se o filme era japonês”, revela Léo Mendes.
Por vezes é necessário seguir estratégias globais adotadas pelas companhias. Rosemback explica que precisou incorporar o nome Gadget para O inspetor Bugiganga. “A letra G aparecia estampada em pôsteres e trailers. Se descartássemos o Gadget, não faria sentido mostrar um G enorme na campanha de lançamento do filme no Brasil”.
Por outro lado, existem casos em que o idioma português permite variações que refletem melhor a história do filme. “O longa The insider (aquele que participa de um grupo fechado) tornou-se O informante”, exemplifica o gerente da Buena Vista, fazendo referência ao filme de Michael Mann que concorre a sete Oscars e tem estreia marcada no Brasil para a próxima sexta-feira.
Já Gisele Nusman chama a atenção para a necessidade de adequar o título nacional a realidade brasileira. “Foi o que fizemos com A lenda do cavaleiro sem cabeça. Originalmente, o filme chama-se Sleepy Hollow (nome da cidade onde tudo acontece), e não diz nada para o público daqui”.
INTUIÇÃO – A dificuldade aumenta quando algumas cópias atrasam por motivos diversos, como greve na alfândega, e o tempo curto obriga os tituladores a usar apenas as sinopses e o bom senso.
Outro drama que perturba os profissionais de marketing e comunicação das distribuidoras é a condição que alguns cineastas impõem, determinando que o título original seja mantido.
“Todos sabem o esmero com o qual Stanley Kubrick cuidava de seus trabalhos, e não era diferente quando seu filme ia para o exterior. Ele exigia que o nome de batismo sempre aparecesse ou que fosse traduzido de forma literal”, fala Mendes da Pandora. “Por sorte nossa, nossa única cópia de Kubrick, Lolita, já tinha o nome referendado universalmente pelo romance de Nabokov, do qual o filme foi adaptado”.
Mas se há um ponto em comum entre os tituladores de todas as distribuidoras, esse ponto é a preocupação em não usar palavras desgastadas para dar nome aos filmes. ‘Herói’, geralmente adianta a história; ‘amor’ não é mais tolerado nos títulos; ‘paixão’ e ‘vida’ são outras, entre dezenas de expressões, que acabam por comprometer o que está por trás do enredo. Para Leon Cakoff, usar palavras desse tipo “é a vulgarização do mercado. É menosprezar o quociente de inteligência do espectador”.
E O OSCAR DE PIOR TÍTULO VAI PARA AS SEGUINTES CATEGORIAS…
Parece mas não é – Homens brancos não sabem enterrar (White Man Can’t Jump) e Duro de Matar 2: Mais Duro Ainda (Die Hard 2) estariam bem titulados se fossem da categoria pornô.
Enigma – Nó na gargante (The Butcher Buy) deve ter surgido de um engasgo do titulador ao assistir a carnificina do garoto açogueiro do título original. E o coração que deveria ser um de anjo virou Coração satânico no filme “Angel Heart”, de Alan Parker.
Ordem de comando – Parece que as comédias pastelão do tipo “Airplane” (Apertem o cinto… o piloto sumiu!) e “Naked Gun” (Corra que a polícia vem aí) estão fadados a virar piada até no nome.
Delator – O nome escolhido para “The Graduate” no Brasil (A primeira noite de um homem) conseguiu a façanha de entregar a história em seu título.
Conselho equivocado – Steve Martin não foi vítima apenas em O tiro que não saiu pela culatra e Fé demais não cheira bem. O filme Plains, Trains and Automobiles conta a história de um cara azarado que não consegue chegar em casa no dia de Ação de Graças devido a problemas com transporte. No Brasil virou Antes só do que mal acompanhado. Outro exemplo é “Office Space”. Apesar de não dar dicar como atazanar seu superior, foi divulgado por aqui pela alcunha de Como enlouquecer seu chefe.
Subtítulo – Algumas distribuidoras precisam manter o título original do filme, mas insistem em dar um subtítulo que dificilmente fica na cabeça de alguém (com algumas exceções como Blade Runner: O caçador de andróides). Mas alguém lembra do segundo nome de Quiz Show, de Robert Redford? (Resposta: A verdade dos bastidores).
A exceção – Máfia no divã (“Analize his”) e A vida em preto e branco (“Pleasentville”) são provas de que nem tudo está perdido.
Descendente – Loucademia de Polícia (“Police Academy”, 1984) e A Hora do Espanto (“Fright Noght”, 1985) deram muitas alegrias a muitos tituladores. Sempre que surge uma história ambientada em uma escola ou academia, virava Loucademia. O mesmo se dava para qualquer longa de terror, que levava o nome de A Hora de alguma coisa. Mais recentemente o subtítulo de Tempo de violência (Pulp Fiction) gerou alguns filhotes batizados de Tempo de alguma bobagem.
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