22a. Tiradentes (2019) – noite de abertura
Abertura foi como um prefácio melancólico sobre o que será 2019 para os festivais de cinema no Brasil
Por Luiz Joaquim | 19.01.2019 (sábado)
TIRADENTES (MG) – Há tanto a dizer sobre a abertura da 22ª Mostra de Cinema de Tiradentes, ocorrida ontem (18) para uma gigante plateia que lotava o Cine-Tenda montado na histórica cidade. Ela, a abertura, foi simbólica em tantas camadas que certamente não conseguerimos dar conta por aqui.
Duas frases, ditas em momentos distintos da cerimônia podem, entretanto, dar uma pista do tom geral que predominou na noite: “Não estaríamos aqui se não existisse a cultura. Nenhum de nós”, foi a primeira, dita em tom grave pela voz da atriz Zora Santos; e “Um país sem arte é um país morto”, que saiu da boca da mãe da atriz Grace Passô, a homenageada desse edição.
Na verdade, o discurso oficial de abertura escrito e lido pela organizadora da Mostra, Raquel Hallak (leia o discurso na íntegra clicando aqui), foi emocionante na medida em que veio carregado de forte melancolia. Antes de iniciar a leitura, Raquel deixou escapar, já comovida, que aquele momento era “uma emoção muito forte, ainda mais hoje”.
Não seria equivocado entendermos o “ainda mais hoje” como uma espécie de estabelecimento oficial de uma incerteza sobre o futuro da Mostra. Sabe-se que a 13ª edição do Cine-OP (outro evento da Universo Produção, de Hallak, sempre acontecendo em junho) teve a confirmação de investidores muito em cima da hora, ameaçando a realização do mesmo.
Para essa 22ª Mostra de Tiradentes, a coragem de Hallak e equipe não foi diferente. Assumiram começar a produção do evento (festivais nascem meses antes de sua abertura) com negociações definidoras ainda em processo.
Em seu discurso, Raquel, ladeada pelos também organizadores Fernanda Hallak e Quintino Vargas (foto acima, de Leo Lara) deixou claro e de forma bastante diplomática que mesmo com 22 anos de uma história consistente e, por que não dizer, necessária, tal evento – transgressora de conceitos pré-estabelecidos – não tem garantias de continuidade. E, considerando o momento político em que estamos, mergulhado num ultraconservadorismo assustador, as fragilidades parecem ficar ainda mais salientes, colocando em risco algo muito valioso para a cultura cinematográfica brasileira, como é a própria Mostra de Tiradentes.
Curiosamente, a abertura de ontem soou como uma espécie de prefácio, ou síntese, do que 2019 promete ao cinema nacional.
A própria cartela final da vinheta de abertura da Mostra, com o carimbo “Ministério da Cidadania” em substituição ao tradicional “Ministério da Cultura”, provocou um estranhamento generalizado na plateia da Mostra. Para tentarmos entender isso, é como se os questionamentos pelas ameças com as quais a comunidade cultural brasileira se debateu nos últimos meses estivesse se materializando, primeira vez, diante de seus olhos. A melancolia é compreensível considerando que, afinal, nunca é fácil encarar a concretização de nossos temores.
Passado o discurso oficial da abertura, a 22ª Mostra faz entrar em cena a performance Cordas gerais, com a “cantautora” e multintrumentista Nath Rodrigues, e participação das artistas Elisa Nunes, Cláudia Vandeveld, Nívea Sabino, Rejane Faria e Zora Santos.
O discurso aqui passou pelo registro de salientar um ideia nominada de “Corpos adiante” e de que a cultura é um bom negócio, esclarecendo as vitórias para o setor a partir da Lei Rounat. “Para cada R$1 investido na cultura, há R$ 400 de retorno”, dizia-se quase como um mantra de esclarecimento aos ignorantes.
Com um trabalho tão comovente e azeitado, com a participação sonora ao vivo do músico “Barulhista”, essa abertura da Mostra talvez tenha sido a mais inclinada para as artes cênicas (e não cinematográfica) de todas de sua história.
Num certo sentido, há uma coerência aqui, se lembrarmos da maior inclinação para o teatro do pêndulo que mede a carreira da homenageada Grace Passô.
FILME – Fruto da união da Grãos de Imagem, EntreFilmes e da Universo Produção, a realização que abriu esta edição – o média-metragem Vaga carne, com direção de Passô e Ricardo Alves Jr. – foi um filme de abertura que expandiu para um outro patamar de reivindicação pelo respeito e pela compreensão do outro, do diferente. Reivindicação tão bem iniciada nos discurso de Raquel Hallak e continuado pela performance acima mencionada.
Em Vaga carne – transcrição audiovisual de performance solo teatral de Grace – o protagonista é uma voz. Imersos em escuridão absoluta, sem imagens na tela, nós na plateia temos apenas a voz (de Passô) nos circundado pelos alto-falantes. Ela se apresenta como uma vontade autônoma que resolve dominar o corpo de uma mulher, negra, e estabelecer seu discurso a revelia da dona desse corpo.
Passô está assombrosa em sua atuação, interpretando uma espécie de possessão conflituosa entre esse discurso alheio que invade seu corpo e o domina. A alegoria é clara, quando pensamos na submissão de um corpo negro na nossa sociedade que o escravizou e o vilipendia até o hoje (cada vez mais, em 2019).
Apesar da verborragia em destaque, não se pode acusar o filme de uma simples transcrição teatral para o cinema. Vaga carne, o filme, alia elementos sonoros e enquadramentos próprios do audiovisual que o deixam comovente também por esse aspecto criativo.
*Viagem a convite da Mostra
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