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Festivais

22a Tiradentes (2019) “Seus ossos” / “Superpina”

Filmes problematizam espaço entre a palavra, o corpo e a imagem.

Por Luiz Joaquim | 22.01.2019 (terça-feira)

acima, still do longa-metragem Seus Ossos, Seus Olhos, de Caetano Gotardo

TIRADENTES (MG) – Para onde irá o cinema de Caetano Gotardo no futuro? Não sabemos, mas parece ser um lugar bom, principalmente se considerarmos o que ele nos apresentou ontem (21), seu mais recente longa-metragem – Seus ossos, seus olhos -, inaugurando o programa competitivo “Aurora” desta 22a. Mostra de Cinema de Tiradentes.

Assim como Tragam-me a cabeça de Carmen M. – projetado um dia antes aqui em Tiradentes -, o novo Caetano Gotardo também irá configurar no 48. Festival Internacional de Cinema de Roterdã. Exibe lá na segunda-feira (28) também dentro do programa Bright future (futuro brilhante).

Gotardo roteirizou, dirigiu, atuou e editou essa obra cuja essência lhe acompanha há nove anos, como bem esclareceu no debate de hoje (22) pela manhã por aqui. Apesar de ser um projeto tanto tempo colado em si, o roteiro final de Seus ossos… só ficou pronto duas semanas antes do início das gravações, revelou também o realizador capixaba de 37 anos.

Vendo o filme, essa curiosidade nem parece tão estranha quando entendemos que a palavra tem um peso definidor nesta obra; assim como o corpo dos personagens e o que deriva das palavras para nós, espectadores.

Num dos raros momentos de revelar o que as palavras propõem em Seus ossos…, João, o protagonista vivido por Gotardo – atuando aqui como a costura narrativa de todo um vestido conceitual que veste o corpo do filme -, apresenta a imagem a qual as tais palavras antecedem.

“Saudades”, Almeida Jr.

Acontece numa conversa entre ele, João, e a amiga Irene (Malu Galli) na Pinacoteca do Estado de São Paulo. Ambos de frente a uma pintura fora do enquadramento do filme, falam do seu entendimento sobre a pintura que o espectador não enxerga. João fala daquilo que acreditava ser uma carta na mão da mulher na pintura. Na sequência, a pintura entra em quadro, inclusive detalhada em pedaços pela fotografia de Flora Dias, e então reconhecemos a obra Saudades, de Almeida Jr., podendo compartilhar aquilo que as palavras de João anunciavam. Com a curiosidade de que o próprio nome da obra – Saudade – sintetiza o teor da conversa na Pinacoteca.

Além desse momento, outros três se colocam a partir da imagem e não pela força da palavra. Porém, nestes outros casos, as imagens vêm descoladas do discurso imediato (diferente do caso da Pinacoteca). Acontece com João fugindo de um rapaz suspeito que o persegue na rua (imagem construída previamente de maneira verbal por João); no encontro casuístico no Metrô com um affair (imagem que será reproduzida posteriormente de maneira verbal por João); e a dança, em silêncio, com Irene (remetendo a uma imagem construída previamente de maneira verbal por Irene).

Neste filme mais do que provocador de Gotardo é a palavra, reforçamos, que aparece como grande força motriz (e também o corpo dos personagens, mas numa segunda escala). Isto porque toda a estrutura que nos é apresentado parte do força intrínseca de cada palavra que é dita (e como é dita), para cada uma das narrativas dos diversos blocos dos diversos personagens (todos relacionando-se com João) no enredo.

O grande exercício feito por Gotardo aqui (e exitoso) parece ser criar uma referência de imagem no espectador, não pela imagem em si, mas pela básica capacidade de seus personagens contarem histórias personalíssimas.

No debate mais cedo, alguém na plateia colocou em pauta um ponto a partir de uma fala de Irene no início do filme. Referia-se ao momento em que a personagem conta da variação das cores verdes pela perspectiva do povo da Namíbia. Segundo ela, numa palheta de variações sutis de verdes, nosso olhar não perceberia como percebem as pessoas da Namíbia. Para o espectador da plateia, as palavras no filme de Gotardo, ou como ele as usava em seu filme, guardavam essa sutileza do entendimento, de espectador para espectador.

Gotardo, Foto Beto Staino

O próprio Gotardo parece brincar (seriamente) com esse jogo que nos propõe (e propõe a si mesmo) em Seus ossos… Por exemplo, na sequência em que Álvaro (namorado de João) ensaia para uma peça, ele, Álvaro lembra de uma história pessoal de um companheiro de trabalho que leu seus escritos em voz alta. Noutra sequência, o amante do Metrô conta a João que quando era criança apaixonou-se e, identificando-se como uma menina, enviou um bilhete para o rapaz por quem era apaixonado. O tal bilhete acabou sendo lido, em tom de troça por todos as colegas do rapaz que ele queria impressionar.

Tanto Álvaro quanto o affair de João no Metrô são taxativos em afirmar o quanto desestruturante e devastador foi ter suas palavras lidas por estranhos. De certa forma, é isso, numa medida, o que Caetano Gotardo se propõe aqui. Ele experimenta tudo isso, e com sua própria imagem na tela.

É como uma espécie de espectador que João (ou Gotardo?) observa trêmulo as palavras que ele (roteirista Gotardo) próprio ordenou sendo lidas em voz alta (mais do que isso, vividas em voz e corpo altos) pelos seus atores em cena, expondo-as para o mundo.

Há ainda uma posição política aqui. Como são os monólogos de João ao telefone celular mudo, como que revelando algo escondido de si para si mesmo, tal qual é o seu desejo de ser mais violento diante do que lhe é imposto pelo mundo.

E se não esquecemos que um filme é fruto do seu tempo, Seus ossos… está falando claramente de como as pessoas cada vez mais oprimidas são cada vez mais oprimidas e, por isso mesmo, precisam se colocar.

O corpo dos personagens entram também como uma alegoria para a forma desse desconforto ou conforto no mundo. No último caso, a encenação coreografada do sexo dá o seu recado. Já para o desconforto, ou talvez apenas para a busca de um equilíbrio, o melhor exemplo está na cena inicial, com João tentando se adaptar ao sofá do apartamento de Irene. É genial. Seus ossos… abre, enfim, um leque muito largo para darmos conta numa única olhada. E isso é bom.

Equipe de “Superpina” em debate na Mostra de Tiradentes – Foto Beto Staino/Universo Produção

PERNAMBUCO – Antes do filme de Gotardo exibiu por aqui, no programa “Olhos Livre”, o primeiro longa-metragem do pernambucano Jean Santos, Superpina: gostoso é quando a gente faz. Fruto de um material originalmente lançado como curta-metragem, cuja circulação e simpatia transcorreu por todo o ano de 2017 e 2018, tem no enredo do longa-metragem algo que pode ser resumido nas seguintes linhas básicas:

Um pequeno supermercado no bairro recifense do Pina torna-se o epicentro para onde personagens encontram-se em torno de uma ideia de “amor primo”, particularmente provocado por Sônia (inês Maia, de rosto marcante e firmeza em cena); ela uma das atendentes na caixa do supermercado.

As questões mais profundas, por assim dizer, em Superpina concentram-se, ou partem de Augusto (Paulo César Freire, ator que aos poucos vai ganhando cada vez mais corpo na atual cinematografia pernambucana) e Paula (Dandara de Morais, aqui muito confortável em cena).

Augusto se entende assexuado, sem tesão, e parte em busca de experimentações para também não ser um excluído. Paula, quer ser cantora e viajar ao exterior mas resolve encarar um trabalho mais tradicional para pagar a contas, indo assim parar no supermercado Superpina. No supermercado, Paula garante um melhor dinheiro daquele que consegue como cuidadora de uma senhora (aqui representada pela bem vinda presença da artista plástica Iza do Amparo).

No meio disso tudo um quê fantástico em torno de luzes coloridas que tomam os céus do Pina e, de certa maneira, parecem afetar a todos no que diz respeito ao “amor primo”.

Jean Santos traz aqui um cabedal de proposições muito ricas para pensarmos num possível ideário sobre relacionamentos fora da caixinha quadrada e hegemônica de nossa sociedade. Mas as tantas camadas que pretende alcançar em Superpina… parecem não chegar com clareza à superfície, ou, por vezes, sobrepõem-se abafando umas às outras, e o resultado soa como uma reiteração daquilo que já foi colocado.

O realizador merece atenção, de toda forma, pelo frescor e liberdade com a qual construiu esse universo tão particular. A propósito, Jean tem outro filme a ser exibido por aqui: o curta Insipiente [com ‘s’ mesmo], no programa “Panorama”, na quinta-feira (24).

*Viagem a convite da Mostra

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